quinta-feira, janeiro 23, 2014

Após um ano, 90 sobreviventes da Kiss ainda preocupam médicos

Após um ano do incêndio, pacientes como Paula Fensterseifer recebem atendimento no Hospital Universitário de Santa Maria (Foto: Luiza Carneiro/G1)Como uma árvore que possui galhos finos e altos, quase escondidos, o pulmão de pelo menos 90 sobreviventes do incêndio na boate Kiss, em Santa Maria,
ainda tem áreas intocadas e infectadas pela fuligem da fumaça tóxica. Essas dezenas de pacientes continuam a preocupar profissionais dos centros de medicina do Rio Grande do Sul um ano após a tragédia que deixou 242 mortos e mais de 600 feridos. Por isso, equipes multidisciplinares se dividem para atender, tratar e evitar sequelas.
(Até sexta-feira (24), o G1 conta como vivem sobreviventes e familiares de vítimas da boate Kiss e o que mudou na lei, nos hábitos e na vida das pessoas um ano depois do incêndio. A tragédia de 27 de janeiro de 2013 matou 242 pessoas.)
A figura de uma árvore invertida é o melhor exemplo que o pneumologista Hugo Oliveira encontra para desenhar o pulmão dos feridos. Segundo ele, além dos 90 casos mais graves, principalmente de jovens que estiveram internados em Centros de Tratamento Intensivo, 48 outros sobreviventes continuam a frequentar seu consultório no Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
É lá que o broncoscópio, um equipamento usado para examinar o órgão, entra em ação. Pelo menos uma vez por mês, os sobreviventes passam pela avaliação usando a tecnologia que permite realizar exames e enxergar as ramificações do pulmão.
"Usamos o broncoscópio flexível para o tratamento. Através do nariz ou boca, ele consegue visualizar as vias aéreas e os brônquios do pulmão. Em um primeiro momento usamos uma substância para soltar a fuligem que se aglomerou nos brônquios", explica Oliveira ao G1, reiterando que o procedimento chegou a ser realizado até oito vezes no mesmo dia em um único paciente.

Ao lado de sua equipe, o gaúcho se tornou referência no tratamento dos feridos no incêndio. Pela experiência inédita, teve de buscar informações com colegas médicos argentinos. O incêndio em uma boate de Buenos Aires na década de 1990 serviu de base para as primeiras decisões médicas.
Segundo o médico, o pulmão possui 21 divisões, e o broncoscópio não consegue chegar nas áreas mais profundas. "A gente chega até a sétima, oitava divisão. Depois disso os brônquios vão ficando cada vez menores. Para liberar isso [a fuligem] é preciso fazer fisioterapia, usar remédios e ir eliminando ao longo dos meses", pontua o médico.

Imagens mostram o pulmão antes e depois da limpeza realizada com o broncoscópio (Foto: Reprodução/RBS TV)

Um estudo que consolida e analisa os dados verificados no tratamento dos sobreviventes durante o último ano será publicado nos próximos meses. O prognóstico dos pacientes ainda é incerto. A única certeza é o acordo firmado entre o Hospital Universitário de Santa Maria (HUSM) e o Ministério da Saúde com vigência de cinco anos para os tratamentos. "Em relação ao dano futuro ainda existe pouco conhecimento. Estamos usando a experiência do 11 de Setembro, mas lá não foi incêndio", reitera o médico Oliveira.
Apesar de atender os pacientes no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, é o Hospital  Universitário de Santa Maria que centraliza a maior parte do tratamento. É ali, na ala da fisioterapia, que sobreviventes se encontram três noites por semana. Em maio, foi criado o Centro Integrado de Atendimento a Vítimas de Acidente (Ciava), que conta com uma equipe fixa de fisioterapeutas, um terapeuta ocupacional e uma psicóloga.

Hospital Universitário de Santa Maria abriga o Centro Intensivo de Atendimento a Vítimas de Acidentes (Foto: Luiza Carneiro/G1)Hospital Universitário de Santa Maria abriga Centro
Intensivo de Atendimento a Vítimas de Acidentes
(Foto: Luiza Carneiro/G1)
O local realiza atendimento aos queimados e pessoas com problemas nas vias aéreas. São 10 consultas por dia. Passado um ano de atuação, o centro soma 4.329 atendimentos realizados até o dia 31 de dezembro.
Mesmo após um ano, pacientes ainda expelem secreção da fumaça tóxica que causou as mortes na Kiss. A rotina do Ciava se repete quase diariamente: são 42 pessoas que frequentam o local. E é através das atividades lá realizadas que os pacientes vêm tirando ao longo dos últimos 12 meses a secreção que ainda segue nos pulmões.
A sessão começa quase sempre com a nebulização. Depois vem a higiene brônquica, uma limpeza nas partes mais danificadas do pulmão, seguida pelo treino respiratório. Para os pacientes mais saudáveis, as fisioterapeutas recomendam 20 minutos de esteira. Para os queimados, massagem nas cicatrizes e exercícios para fortalecer a musculatura.
Foi ali no HUSM que Paula Fensterseifer, de 23 anos, percebeu que o pulmão estava em parte comprometido. Até então a estudante acreditava que cortes no pé devido ao tumulto e os pisões que levou na casa noturna seriam as únicas cicatrizes. "Escutei o pulmão dela e percebi que não estava ventilando", explica a fisioterapeuta Anna Ouriques, que trata a paciente.

Bárbara (E, na foto) reatou com o namorado após a tragédia e agora comemora gravidez (Foto: Luiza Carneiro/G1)Bárbara (E, na foto) reatou com o namorado após
a tragédia e agora comemora gravidez ao lado da
fisioterapeuta Silvia Serafim
(Foto: Luiza Carneiro/G1)
Em outra sala menor, em uma maca, Bárbara Felipeto, de 24 anos, costumava adicionar aos exercícios respiratórios atividades para retomar a memória. Logo após a tragédia ela perdeu o foco, se sentia cansada, não conseguia se concentrar e esquecia facilmente das conversas. A estudante de tecnologia em agronegócios já está afastada da faculdade há um ano.
"Fiquei com um trauma bem grande. Lembro o que aconteceu e fico triste. Nunca pensei que iria estar em coma em um hospital", fala Bárbara, que ficou internada 15 dias em Porto Alegre por conta da fumaça tóxica.
Apesar do trauma que ainda luta para superar, a tragédia promoveu a reaproximação de um amor antigo. Na noite do incêndio, fazia pouco mais de um mês que Bárbara havia terminado um relacionamento de seis anos. Depois do incêndio, ela reatou com o namorado Jaian Schirmer, de 26 anos. Os dois passaram a morar juntos e estão esperando um bebê.
"Quando meu namorado soube que eu estava internada, foi para Porto Alegre. Mas voltamos mesmo em junho, julho. Aí fomos morar juntos", conta a jovem, sem esconder o sorriso. "A gravidez não foi planejada, mas desde que descobri foi um alívio para a minha cabeça. Fico pensando no bebê, nas roupas, em como vai ser."
De acordo com a fisioterapeuta Ana Lúcia Cervi Prado, coordenadora da fisioterapia do HUSM, o tratamento de Bárbara foi readequado para a gestação. Além da rotina de fisioterapeutas, pneumologistas, psiquiatras e neurologistas, a jovem agora frequenta também o ginecologista para o pré-natal. "Posso ter até parto normal", comemora.
Centro concentra atendimentos e até remédios para os sobreviventes
O Ciava foi formalizado quase quatro meses após a tragédia da boate Kiss. Antes disso, voluntários realizavam os atendimentos desde 18 de fevereiro. A Força Nacional do SUS esteve na cidade nos primeiros dias após a tragédia e auxiliou no processo de implantação do centro.
"A Força atuou aqui nos primeiros dias, depois esteve aqui durante os mutirões [até maio de 2013] e agora, como é do papel da própria Força, faz conosco as avaliações do acompanhamento dos sobreviventes", pontua a coordenadora do Ciava, enfermeira Soeli Guerra.
Passado um ano de atuação, o centro soma mais de 4 mil atendimentos, todos pelo Sistema Único de Saúde. O banco de remédios disponível para os envolvidos no incêndio também se localiza ali, apesar de ser uma atribuição do governo do estado.
Para Soeli, a necessidade de agilidade foi um dos fatores principais para centralizar a distribuição, evitando que os pacientes precisassem se descolar até a 4ª Coordenadoria Regional da Saúde, como os pacientes comuns do SUS normalmente fazem no município.
"Seria muito presunçoso dizer que não tivemos problemas ao longo deste um ano. A liberação de medicamentos segue um fluxo previsto em lei e isso foi revisto. Criamos um especial para liberar mais rapidamente. Junho, julho e agosto foram meses críticos disso", relembra Soeli, sobre as reclamações de sobreviventes para conseguir as medicações.
"Outra queixa era a avaliação dos queimados em Porto Alegre. Trouxemos para Santa Maria e isso minimizou bastante. E também, a partir de julho, a Associação de Familiares e Vítimas da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) se inseriu e começou a ser a interlocutora dos que precisavam de atendimento. Eles fazem parte do núcleo gestor do Ciava", diz. 

Uma casa na área central de Santa Maria é a referência do Acolhimento psicosocial para envolvidos na tragédia (Foto: Luiza Carneiro/ G1)Uma casa na área central de Santa Maria é a
referência do Acolhimento psicossocial para
envolvidos na tragédia (Foto: Luiza Carneiro/ G1)
Além do atendimento físico, familiares e sobreviventes também têm acompanhamento psicossocial desde a tragédia. O Acolhimento, como é chamada a casa localizada no Centro de Santa Maria, realizou cerca de 4 mil atendimentos individuais ao longo de 2013.
De acordo com o psiquiatra e coordenador do projeto, Volnei Dassoler, a tragédia apresenta maior potencial traumático por envolver jovens.
"Não quer dizer que as pessoas não retornaram à rotina da sua vida, como os estudos, o trabalho, os passeios, mas isso não  significa que está sendo feito tranquilamente. O luto não pode ser pensado como um processo com tempo pré-determinado", explica Dassoler.
O serviço disponibilizado pela prefeitura municipal também segue o termo de vigência de cinco anos. Das 900 pessoas com registro em prontuário no ano de 2013, aproximadamente 200 seguem com algum tipo de acompanhamento, normalmente realizado em sessões de terapia individuais.
"A partir do mês de agosto, propomos a realização de algumas oficinas como artesanato, cinema e relaxamento. Posteriormente, avaliamos que essas formas de expressão e tratamento não deveriam estar concentradas em um serviço de saúde, mas que deveriam ser buscadas na extensão já instalada da cidade", disse Dassoler.
Outro serviço disponibilizado pelo Acolhimento é a equipe de psicólogos e assistentes sociais, que acompanha os familiares e sobreviventes nas audiências do processo criminal que tramita na justiça local.

Reprodução Cidade News Itaú

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