quarta-feira, dezembro 03, 2014

O garoto do cofrinho de R$ 4 milhões em moedas

Felipe Ventura é uma figura bissexta na televisão brasileira. Há 16 anos, ele faz sempre a mesma e marcante aparição anual no horário nobre. A última foi no início de novembro, quando dividiu o palco e o microfone com Silvio Santos por
12 minutos, na maratona televisiva de doações para a AACD (Associação de Assistência à Criança Deficiente), durante a programação do SBT.

O jovem publicitário de 23 anos cresceu aos olhos do público que acompanha o Teleton. Incorporou o nome do programa beneficente ao seu, desde que aos oito anos entrou no ar com seu cofrinho de lata para fazer a primeira doação ao vivo.

Felipe conta que assistia tevê em casa com os pais, os empresários Francisco e Deborah Ventura, donos de uma conhecida rede de óticas, quando se sensibilizou com o apelo de Silvio, acompanhado no estúdio pela outra estrela da emissora, a apresentadora Hebe Camargo, aos telespectadores. "Faltavam R$ 3 milhões para que eles batessem a meta daquele ano", recorda-se.

COFRINHO DO MICKEY

O garoto não deu sossego aos pais enquanto não foi ao quarto resgatar o seu cofrinho. Abriu a latinha do Mickey e contou as moedas na sala: R$ 75, acumulados naquele 1998. Apesar do adiantado da hora, insistiu para ser levado até a tenda onde eram feitas as doações físicas, ao lado dos estúdios onde se computavam as doações telefônicas.

Quando os Ventura chegaram ao local já era quase meia-noite, horário do encerramento do programa daquele ano. "Acabaram nos confundindo com amigos do Silvio Santos que estavam para chegar e aí foram abrindo a portaria, chamando produtor e segurança para nos receber", lembra-se o garoto que, por engano, foi levado aos bastidores do programa.

Quando a mãe conseguiu desfazer o mal-entendido, o filho já estava pronto para entrar no palco. Mesmo assim a história do menino que saiu no meio da noite com seu cofrinho para fazer a doação comoveu Hebe, que fez um convite inesperado: "Felipinho, se eu te chamar ao palco você entra?" Ele respondeu: "Mas eu vou conseguir chegar ao banco?". Havia um também no estúdio.

Hebe o levou para a frente das câmeras, onde estava Silvio, a dupla que o fizera trocar o pijama e resgatar o cofrinho. Ao final, o dono do SBT lançou um desafio ao garoto: "Quero que você volte ano que vem com dois cofres. Você consegue?"

A VOLTA

Felipinho conseguiu mais. No ano seguinte, foi até a casa de shows onde estava sendo realizado o programa para mostrar a Silvio que superara o desafio. No caminho, o pai foi baixando suas expectativas, afinal eles não haviam entrado em contato com a produção. "Na portaria, meu pai mostrou o cofrinho e o segurança lembrou da história: 'Você voltou?'", relata Felipe.

A produção foi acionada pelo rádio e o garoto reencontrou o dono do SBT no palco. "Pôxa, volte ano que vem com três cofrinhos", incentivou o apresentador. "Virou tradição", diz Felipe, que retornou nos 14 anos seguintes, sempre no horário do Teleton apresentado por Silvio e com mais cofrinhos recheados de mais moedas a cada edição.

A ponto de fazer uso de malas para transportar as doações. De R$ 320 no segundo ano, passou para a casa dos milhares em 2002 (R$ 1.500). Acrescentou mais um dígito em 2006 (R$10.048), valor que triplicou em 2013 (R$ 30 mil).

Neste ano, a emissora providenciou uma caixa de acrílico com rodas para transportar os 400 kg de moedas até o palco, totalizando R$ 31.330. "Ninguém desperdiça moeda perto de mim", conta ele, que foi espalhando cofrinhos na rede de lojas da família e entre parentes e amigos para turbinar sua doação pessoal ao programa, que totaliza R$ 201.261, em todos esses anos.

FAZENDO ESCOLA

Felipinho fez escola, literalmente. Em 2004, seu exemplo inspirou a AACD a criar um programa de arrecadação de doações espalhando cofrinhos em colégios e faculdades. E o marketing da entidade, que mantém hospitais de referência para atendimento de portadores de deficiência, chamou o garoto, então com 13 anos, para ser o embaixador da Corrente de Bem.

Nos últimos dez anos, Felipinho e a turma do cofrinho amealharam moedas para encher um carro forte: R$ 3,8 milhões. "No começo, percorremos os colégios da cidade de São Paulo, depois os do Estado e desde 2013 estamos fazendo palestras em escolas e faculdades de todo o país." Foram realizadas mais de 170 palestras para um público estimado em 35 mil estudantes. Do Piauí a Minas, passando pelo Paraná.

Para convencer a galera a entrar na corrente, Felipe usa o seu próprio exemplo. "Mostro que sou uma pessoa comum, jovem como eles, que consegue disponibilizar não só dinheiro, mas também seu tempo para ajudar uma causa."

O engajamento de Felipe é facilitado pelo fato de trabalhar no departamento de marketing da empresa da família, o que lhe permite ter flexibilidade de horário para viajar e assumir compromissos dentro e fora do Estado.
Ele virou pop. Sua página no Facebook tem 76 mil seguidores. Depois da aparição no último Teleton, recebeu mais de 3.000 mensagens.

TESTE DE CÂMERA

O garoto do Teleton tem hoje uma coluna na internet sobre o terceiro setor e acaba de encaminhar a Silvio Santos o piloto de um programa de TV voltado para o tema. "Até que você é bonitinho", brincou o dono do SBT, ao fazer um teste improvisado de câmera, ao vivo, quando Felipe falou de sua ideia.

O futuro patrão lhe deu algumas dicas, antes mesmo de avaliar seriamente a proposta: "Não fala muito senão cansa", disse Silvio, quando o publicitário se estendeu sobre o trabalho voluntário.

O candidato a apresentador dividiu o palco com pacientes atendidos pela AACD, com os quais viaja em suas palestras de sensibilização pelo país. Muitos deles em cadeira de rodas, experiência que vivenciou aos 10 anos.

Em 2000, Felipinho sofreu um tombo na casa dos avós. "Caí no chão e uma vértebra se deslocou. Não sentia nada da cintura para baixo." Por seis meses, encarou o drama de talvez ficar paraplégico para o resto da vida. Os médicos não fecharam um diagnóstico preciso. A mãe, após vê-lo submetido a um exame traumático em que teve o corpo coberto de agulhas, resolveu tirá-lo do hospital e procurar um ortopedista amigo da família.

Os exames foram encaminhados a um centro de referência nos Estados Unidos. "Lá, eles identificaram uma lesão medular do tipo que o meu próprio organismo ia recuperar, por eu ser uma criança." O prognóstico era de retomar os movimentos entre 6 e 16 semanas. "Aluga uma cadeira de rodas, leva ele de volta para a escola e vida normal. Nada de fisioterapia", recomendou o ortopedista, contrariando as recomendações da primeira equipe médica. "Não faça nada que possa aumentar a lesão. Repouso."

Assim foi feito. "Fiquei seis meses sem andar, não sentia minhas pernas. Tentava levantar, não tinha força nenhuma. Na 16ª semana, levantei e saí andando do nada", diz ele.

INSPIRAÇÃO

Sua história serve de inspiração nas palestras e o aproxima das crianças atendidas pela AACD. "Passei na pele o que elas sentem. A falta de acessibilidade, a discriminação e o olhar de pena. Isso me dá mais força para lutar e tentar mudar a mentalidade e incluir essas pessoas na sociedade."

Felipe se imagina daqui a dez anos comandando o seu próprio programa, numa aposta de que o terceiro setor e o voluntariado podem dar ibope e crescer muito no Brasil. "Só 8% dos jovens brasileiros são engajados em projetos voluntários, participação que vem crescendo, mas é pequena. A gente precisa entender que o bem-estar individual só será pleno se houver bem-estar coletivo."

O discurso de que está "fazendo a sua parte para melhorar o mundo" tem encontrado eco. O trabalho sem remuneração ainda é regra, mas ele começa também a ser convidado para palestras motivacionais em empresas. Nesse caso, cobra R$ 3.000, cachê de iniciante. Se cuida, Silvio Santos. O menino do cofrinho se mira no homem do baú e quer mais do que os dez minutos de fama por ano na tevê.

Fonte: Folha de SãoPaulo

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