terça-feira, junho 10, 2014

Só duas das 12 cidades da Copa têm o mínimo de conselhos tutelares

Carro já está sendo usado pelos conselheiros do Conselho Tutelar Manaus - Sul I (Foto: Divulgação/Conselho Tutelar Manaus - Sul I)Levantamento feito pelo G1 nas 12 cidades-sede da Copa do Mundo mostra que só em Cuiabá e Brasília o número mínimo de conselhos tutelares exigido por lei desde 2011
é cumprido. A função do conselheiro tutelar no Brasil é zelar pelos direitos das crianças e adolescentes, e exigir de outros órgãos públicos que esses direitos sejam cumpridos. É para o conselho que um menor de idade é encaminhado quando é encontrado em alguma situação de violação de direitos. Com a Copa, a expectativa de conselheiros, promotores de infância e delegados especializados é de aumento de denúncias de crimes contra crianças e adolescentes.
Ao todo, as 12 cidades têm 161 conselhos formados por cinco conselheiros cada. Mas, segundo o mínimo exigido pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), a instância máxima de controle de políticas públicas para crianças e adolescentes, é preciso que as cidades tenham pelo menos um conselho a cada 100 mil habitantes. Considerando os números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para 2013, nove das 12 cidades-sede têm até metade do número recomendado de conselhos.

DÉFICIT DE CONSELHOS TUTELARES
Cidade-sede (população*)Nº mínimo recomendado**Nº atual de conselhos  (déficit)
Rio de Janeiro   ( 6.429.923)6412
(19%)
Fortaleza (2.551.806)256
(24%)
Belo Horizonte (2.479.165)259
(36%)
São Paulo (11.821.873)11844
(38%)
Recife (1.599.513)157
(47%)
Manaus (1.982.177)199
(48%)
Salvador (2.883.682)2814
(50%)
Curitiba (1.849.946)189
(50%)
Natal
(853.928)
84
(50%)
Porto Alegre (1.467.816)1410
(72%)
Cuiabá (569.830)55
(100%)
Brasília - DF (2.789.761)2732
(118%)
Fonte: IBGE/Conanda
*Dados de 2013 do IBGE
**Recomendação do Conanda
Durante a Copa do Mundo, as principais preocupações dos conselheiros são o trabalho infantil nos entornos dos estádios e, principalmente, a exploração sexual infantil nas áreas de grande circulação de pessoas. Para articular as ações de prevenção, conscientização e atendimento às denúncias de exploração infantil, os governos federal e estaduais criaram comitês locais e um nacional para integrar o trabalho dos conselheiros tutelares e de outros órgãos, como o Ministério Público e as varas da infância e juventude, e de organizações da sociedade civil. O trabalho foi capitaneado por instruções da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR).
A idealização do que o governo chama de agenda de convergência, a atuação integrada dos órgãos que defendem os direitos das crianças, teve início em 2012 e previa uma série de ações para preparar os órgãos que lidam com crianças e adolescentes antes, durante e depois do mundial de futebol, com novas estruturas que o país herdaria como legado da Copa.
Em documento de mais de 500 páginas daquele ano, feito pela ONG Childhood Brasil, que integra o comitê nacional, entre as ações idealizadas para preparar o país nessa área estavam a elaboração de material informativo específico para correspondentes internacionais, o treinamento de policiais e guardas municipais sobre direitos das crianças e adolescentes e o funcionamento dos conselhos tutelares durante as 24 horas do dia.
Atuação nos estádios e prevenção
A poucos dias da abertura do evento, porém, a maioria das cidades-sede ainda não conta nem com o número mínimo de conselheiros exigido para o atendimento das demandas cotidianas. Nos dias de jogos, os conselheiros montarão "equipes volantes" com membros do Ministério Público, varas da infância e forças de segurança que atuarão nos estádios e nas fan fests da Fifa, com início três horas antes da partida e funcionamento até três horas depois.
Um único panfleto foi impresso para todos os públicos de estrangeiros e, até a publicação deste reportagem, a assessoria de imprensa da SDH/PR não soube dizer quantos policiais e guardas municipais receberam treinamento específico para proteger os direitos da infância e adolescência.
Entre as ações executadas estão o aumento de 25% no número de atendentes do Disque 100, serviço da SDH/PR que recebe denúncias de violações de direitos das crianças, a elaboração de instruções para a agenda de convergência dos comitês locais e a doação de kits para equipar cerca de 20% dos conselhos tutelares do Brasil. O governo disse ter feito parceria com companhias aéreas para que os pilotos dos voos com destino final ou escala no Brasil anunciem, no sistema de comunicação, que o sexo com menores de idade no país é crime. A secretaria não informou, porém, quantas companhias aderiram à parceria e em que datas ela será executada. Um aplicativo para celular foi lançado para oferecer às pessoas uma lista com endereço e telefone das delegacias e conselhos tutelares próximos a elas, no intuito de incentivar o aumento das denúncias.
Para os menores de idade estrangeiros que visitarão o país, o Conselho Nacional de Justiça afirma ter distribuído, nas embaixadas, um documento de identificação com os dados deles e dos pais, que deve ser apresentado na entrada no Brasil e em estabelecimentos como hoteis, para garantir que essas crianças e adolescentes sempre estejam acompanhada de seus responsáveis.
A festa e a preocupação com o trânsito nas cidades-sede levou os governos municipais a adotarem uma medida que, segundo promotores e conselheiros, pode aumentar o risco de vulnerabilidade das crianças: a mudanças das férias escolares para coincidir com o período da Copa. Em quase todas as sedes, as escolas municipais e estaduais vão iniciar o recesso dos estudantes até o fim desta semana. As exceções são Porto Alegre, onde as escolas públicas poderão liberar os alunos, se desejarem, apenas em dias de jogos do Brasil ou partidas na cidade, e Curitiba, onde as férias só começam após o fim das partidas realizadas no Paraná, e haverá aulas durante três dias no período do mundial.
Para os especialistas na área da infância, o ócio das férias pode fazer com que crianças em locais sem estrutura de lazer passem mais tempo na rua desacompanhadas. Em São Paulo, a prefeitura diz que vai garantir o atendimento nas creches, de acordo com a demanda.

Sala improvisada de conselho tutelar em Brasília, com os novos equipamentos doados pela SDH/PR (Foto: Divulgação/Conselho Tutelar Brasília I)Sala improvisada de conselho tutelar em Brasília:
equipamentos novos, mas sem espaço
(Foto: Divulgação/Conselho Tutelar Brasília I)
Conselhos são deficitários
Das 12 cidades-sede, Cuiabá, com seis conselhos e mais de 560 mil habitantes, e o Distrito Federal, que conta com 32 conselhos para uma população distrital de mais de 2,7 milhões de pessoas, são as duas únicas onde, no dia a dia, não há déficit de conselheiros tutelares.
O Rio de Janeiro é o município com a pior situação: a cidade, que em 2013 tinha uma população estimada em 6,4 milhões de pessoas, segundo o IBGE, conta com 12 conselhos, 19% do número mínimo ideal, de 64. Os seis conselhos tutelares em Fortaleza representam 24% dos 25 necessários para o atendimento da população da cidade. Os quase 12 milhões de moradores de São Paulo contam com 44 conselhos tutelares, 38% do que número ideal de 118, segundo a regra do Conanda.
Em 2013, o governo federal lançou pela primeira vez o Cadastro Nacional de Conselhos Tutelares, o primeiro documento detalhado sobre os conselhos, que existem desde 1990. De acordo com os dados da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), em 2012 o Brasil tinha 5.906 conselhos e, para cumprir a determinação do Conanda, seria preciso criar 632 novos conselhos.
O problema do déficit, segundo o levantamento, está nas cidades grandes, que respondem por 50% da falta dessa estrutura nas políticas de atendimento às crianças e adolescentes. É esse o caso enfrentado até hoje pela maioria das cidades-sede.

Sala do Conselho Tutelar de Curitiba - Regional Matriz com os novos equipamentos (Foto: Divulgação/Conselho Tutelar de Curitiba - Regional Matriz)Sala do Conselho Tutelar de Curitiba - Regional
Matriz com os novos equipamentos (Foto:
Divulgação/Conselho Tutelar de Curitiba - R. Matriz)
Kits para a Copa do Mundo
O cadastro feito pelo governo federal apontou também que parte significativa dos conselhos não tinha infraestrutura adequada pra funcionar. O documento afirma que 25% deles não tinham telefone fixo, 37% não dispunham de telefone celular, 44% não tinham um carro ou veículo de uso exclusivo, e 41% sequer dispunham de uma sede própria e de uso exclusivo (o atendimento adequado às crianças inclui fraldário e recintos onde as crianças podem dormir até terem seus casos encaminhados de volta para a família ou para um abrigo. Além disso, 60% dos conselhos não contam com funcionários para serviços administrativos, o que faz com que o trabalho burocrático dos conselheiros se acumule e reduz a capacidade de atendimento direto às crianças.
Para reduzir esse déficit estrutural o governo federal doou, para os governos municipais, de equipamentos de uso exclusivo dos conselhos para as prefeituras. Até o fim de 2013, segundo a assessoria de imprensa da SDH/PR, 1.122 conselhos haviam recebido um kit com um carro, cinco computadores, uma impressora, uma geladeira e bebedouro.
O G1 entrou em contato com dezenas de conselheiros de todas as cidades-sede para saber se os kits foram entregues. Embora a maioria tenha dito que sim, alguns afirmaram que a doação chegou apenas parcialmente, e apontaram entraves legislativos ou orçamentários das prefeituras que os impedem de receber todos os equipamentos.
Em Curitiba, os carros ainda não chegaram às mãos dos conselheiros porque a prefeitura ainda está no processo de oficialização da doação. Segundo a Fundação de Ação Social (FAS), entidade municipal que cuida da relação com os nove conselhos tutelares, os equipamentos ainda estão em fase de homologação. Em seguida, os veículos passarão por um processo de documentação.
A utilização dos carros, porém, ainda precisa de uma terceira fase. “Em relação à condução dos automóveis, a legislação municipal prevê que os veículos oficiais da frota da Prefeitura de Curitiba sejam guiados somente por motoristas do quadro de servidores. Assim, para a efetiva utilização dos automóveis pelo Conselho Tutelar, deverão ser destacados motoristas do quadro de servidores para condução dos veículos”, afirmou a FAS, em nota.


Frota de 44 carros exclusivos dos conselhos tutelares foi doada em novembro de 2013, mas ainda não está nas ruas (Foto: Divulgação/Cesar Ogata/Secom)Frota de 44 carros exclusivos dos conselhos foi
doada em novembro de 2013, mas ainda não está
nas ruas (Foto: Divulgação/Cesar Ogata/Secom)
Em São Paulo, os 44 veículos foram entregues em novembro de 2013 em um evento que contou com a presença do prefeito Fernando Haddad e da maior parte dos 220 conselheiros. Os carros, porém, ainda estão estacionados, porque a prefeitura está fazendo uma licitação para a gestão da frota (seguro, motorista e outros gastos).
Segundo a prefeitura, está prevista a criação de oito novos conselhos em 2015, e o governo municipal tem tentado compensar a defasagem da estrutura dos conselhos paulistanos, que já dura décadas. Em maio, ao SPTV, a prefeitura afirmou que o processo de licitação da gestão da frota estava em fase final, mas não tinha prazo para ser concluída.
Em Natal, Salvador e Cuiabá, os conselheiros ouvidos pelo G1 afirmam que receberam todos os itens do kit, com exceção dos telefones. Em Belo Horizonte e Fortaleza, os conselheiros dizem que o bebedouro é, na verdade, o suporte para galões de água que precisam ser comprados periodicamente. O G1 perguntou à SDH/PR sobre esse tipo de bebedouro, mas não recebeu retorno até a publicação desta reportagem.
Experiência da Copa das Confederações
Desde 2012, o mandato de boa parte dos conselheiros atuais foi prorrogado depois que uma lei alterou artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e unificou as datas de eleições dos conselhos de todo o país. A próxima troca de conselheiros será realizada no segundo semestre de 2015, com início do próximo mandato em 2016. A nova lei, porém, não estabelece as regras do processo seletivo, apenas diz que os candidatos devem ter “idoneidade moral”. Em algumas cidades, a lei municipal exige que, para concorrer ao cargo, o candidato precisa ser aprovado em uma prova sobre o ECA e leis locais relacionadas aos menores de idade. Segundo apuração do G1, nas cidade-sede da Copa o salário de um conselheiro varia entre R$ 1.800 e R$ 4.600.
Em algumas cidades, como Brasília, Fortaleza e Natal, para poder se candidatar à eleição, o futuro conselheiro tutelar precisa ser aprovado em uma prova de conhecimentos do ECA e das leis municipais relacionadas à criança e ao adolescente. Em outras, como São Paulo, por exemplo, não há qualquer exigência de conhecimento legislativo prévio de um candidato. São eleitos os conselheiros que receberem mais votos da população.
Segundo Fabíola Moran Faloppa, promotora de Defesa dos Direitos Difusos e Coletivos na Infância e Juventude de São Paulo, o comitê local de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes pediu que os conselheiros recebessem treinamento específico para sua atuação durante a Copa do Mundo, mas o pedido não se concretizou.
Segundo ela, o próprio comitê foi criado em janeiro, com muito pouca antecedência para se preparar adequadamente. "Essa preparação deveria ter começado há anos, ao mesmo tempo em que a Fifa começou a se preparar para a Copa. A Fifa começou há sete anos, nós não", afirmou ela ao G1. As reuniões semanais, segundo a promotora, foram produtivas e, entre outras ações, o comitê deliberou a construção de um abrigo temporário para acolher adolescentes que forem encontrados desacompanhados, mas que sejam de outras cidades, e não possam ser reunidos com a família imediatamente.

Em Fortaleza, Antônia Lima, promotora e coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Defesa da Infância e da Juventude do Ministério Público do Ceará, conta que o comitê local também foi criado em janeiro deste ano. A cidade, que sediou a Copa das Confederações em 2013, ainda não está totalmente preparada para o fluxo de turistas que pode passar de 2 milhões. Mas aprendeu com os acontecimentos do ano passado. "A gente não tinha dimensão do que ia acontecer. Paralelamente houve as manifestações, que foi outra novidade. No meu olhar, percebi que ficou meio que prejudicado o acompanhamento da situação de exploração, porque o foco maior foram as manifestações", disse ela.
Antônia afirma que, como houve um grande número de menores de idade detidos nos protestos, o trabalho dos conselheiros e promotores acabou acumulado nessa questão, que não estava prevista na estratégia de atuação. Neste ano, ela diz que Fortaleza está mais preparada para priorizar o atendimento aos menores de idade. Na cidade, um dos maiores problemas é a prostituição de meninas adolescentes.
"Mesmo considerando que é um crime hediondo, com essa lei recente, ainda são muito poucas as ações voltadas à prevenção e promoção de direitos, direitos fundamentais como saúde, educação e assistência. Porque essas meninas vêm de situação de famílias de vulnerabilidade social. Eu acho que a minha cidade infelizmente não está preparada para trabalhar essa realidade."
A promotora Fabíola, de São Paulo, alerta que o déficit de conselheiros e estrutura é um sinal de que a Constituição não está sendo cumprida no artigo em que exige que as políticas para crianças e adolescentes tenham prioridade absoluta. "Se é prioridade absoluta, por que os conselheiros não tinham carro até agora? Por que não tinham capacitação? Por que não se encaram de frente os problemas efetivos que existem, e contratam-se funcionários, um corpo técnico, se exige algum preparo, algum conhecimento na área. O conselho foi concebido para ser um órgão apolítico, e não é isso que a gente vê hoje em dia."

Reprodução Cidade News Itaú via G1

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