quinta-feira, agosto 29, 2013

Sobrevivente da chacina de Vigário Geral diz que PM queria matar crianças

Núbia Silva dos Santos, 30, era uma criança de dez anos quando sua família foi assassinadaNúbia Silva dos Santos, 30, teve um fuzil apontado para a sua cabeça enquanto o grupo de extermínio formado por policiais militares e conhecido como "Cavalos Corredores" assassinava com requintes de crueldade oito familiares, entre os quais a mãe e os avós, na tragédia que ficou conhecida como a chacina de Vigário Geral, favela da zona norte do Rio de Janeiro, há exatamente 20 anos. A jovem, que tinha dez anos à época, escapou por ser criança.

"Eu estava dormindo e coloquei o lençol sobre o rosto quando eu acordei. Ainda tentei descobrir o rosto, mas um policial já veio porque eles sabiam que eu iria ver a cara deles. Eu não cheguei a ver nada, mas lembro que eles comentaram. Eles falaram para eu não descobrir o rosto e encostaram o fuzil na minha cabeça. E um deles falou: 'não descobre porque se você fizer isso eu vou te matar'. Essa cena não sai da minha cabeça", disse ela.

Núbia ainda conseguiu salvar outras quatro crianças, também poupadas pelos assassinos, depois que os PMs se retiraram da residência da família. Segundo ela, um dos policiais chegou a tentar convencer o grupo de que os menores também deveriam morrer. Mas desistiu da ideia porque o dia já estava clareando.

"Outro policial veio depois e falou: 'vamos matar as crianças'. E um respondeu que não era para matar as crianças porque elas não tinham nada a ver com isso", afirmou.

"O outro falou que mataria assim mesmo, mas foi convencido porque o dia já estava clareando. 'O dia já está clareando a gente não quer negócio de testemunha, não'. Então eles saíram da casa", completou Núbia.


Relato
Lembro-me dele [policial] falando para o meu tio, que foi o último a morrer. O meu tio falou: 'Não mata não. Eu sou trabalhador'. O policial perguntou onde estava a documentação dele, já que ele era trabalhador. Ele foi e pegou os documentos. 'Está aqui a minha carteira de identidade e a minha carteira de trabalho. Eu sou trabalhador', disse o meu tio. Depois disso eu não escutei mais nada. Apenas os tiros.

O meu tio chegou a perguntar: 'Vocês estão vendo o que vocês fizeram?'. E eles responderam que não queriam saber de nada. Que era para ele mostrar os documentos e ficar calado. Meu tio comprovou que ele era trabalhador e inocente. Mesmo assim, eles não perdoaram. Se deixassem ele vivo, meu tio seria uma testemunha. Então decidiram matar.

Eles estavam matando quem eles vissem pela frente. Não queriam saber quem era. Se era criança, jovem ou idoso.

Quando eu levantei, já me deparei com o corpo do meu tio sobre o corpo de uma outra tia. Entrei no quarto e falei que não estava acreditando naquilo. Chamei a minha mãe e ela não respondia. Ela morreu atrás da porta e eu ainda não tinha visto o corpo dela. No quarto, eu vi a minha avó ajoelhada, morta, com a bíblia aberta. Ela estava orando. Ela tinha o costume de acordar no meio da noite e orar pela família.

O corpo da minha outra tia estava em cima da cama, com a cabeça caída para o ventilador. Quando eu fui correr atrás de uma outra tia porque a neném estava chorando, eu pensei: 'O que eu faço agora?'.

Peguei a neném, chamei as outras crianças e saímos do quarto. Quando eu olhei para o sofá, vi a minha tia que tinha acabado de ter bebê morta, imprensada no sofá. Os peitos dela estavam vazando porque ela ainda estava na fase de amamentação.

Não foi só quem morreu. Nós também tivemos nossas vidas interrompidas. Muitos têm trauma. Eu, inclusive, não saio na rua sozinha de jeito nenhum. É difícil caminhar na rua porque eu sempre acho que tem alguém me seguindo ou me olhando. Eu não posso trabalhar. E vivo de uma pensão que, pela lei, acaba aos 65 anos, com a idade de aposentadoria.

Zeca Guimarães/Folhapress

Reprodução Cidade News Itaú

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