sexta-feira, junho 09, 2017

Luta de famílias por bagagens de mortos em avião da Chapecoense tem saque, confusão e exposição em WhatsApp

Fabienne, presidente da associação dos familiares das vítimas do voo da Chapecoense, recebeu até o momento apenas passaporte do marido, o fisiologista Luiz César Martins Cunha (Foto: Fabio Tito/G1)

Seis meses de dor e sofrimento diário marcam a luta das famílias de jogadores, jornalistas e comissão técnica mortos no acidente da Chapecoense na Colômbia, em novembro de 2016, para a devolução dos pertences das vítimas. Os parentes relatam que pouco receberam de volta e, o que voltou, foi misturado e exposto sem privacidade em um grupo de WhatsApp criado em 12 de maio pelo clube para que viúvas e pais pudessem identificar os itens perdidos.
Parte do material havia sido tratado e acondicionado pela Blake Emergency, empresa contratada pela companhia aérea LaMia, que fazia o voo, para a recuperação. Outra parte das bagagens ficou retida no aeroporto de Rionegro e consistia, na maioria, em malas. Uma terceira parte foi entregue por moradores da região de La Unión, onde a tragédia ocorreu. Segundo o clube informou aos familiares no grupo de WhatsApp criado, pertences dos mortos foram saqueadas e sumiram no local do acidente logo após a queda.
O problema começou no momento do retorno de todas as bagagens a Chapecó, em Santa Catarina, a sede do clube. Lá, embalagens já fechadas, separadas e identificadas por vítimas pela Blake foram misturadas com o material recolhido e devolvido pelos moradores e as outras malas. Segundo as famílias, bolsas e invólucros lacrados, etiquetados e nominados foram abertos e pertences pessoais - até roupas íntimas - foram retiradas de dentro das bolsas e expostos no grupo de troca de mensagens. A mistura dos pertences preocupou familiares, mas a explicação foi que tudo seria mostrado para facilitar a identificação.
Houve, porém, bens que foram reconhecidos por mais de uma pessoa, gerando transtorno e desinformação, informa Fabienne Belle, a presidente da associação criada pelos familiares e que reúne parentes de mais de 17 vítimas.

Funcionários do clube Chapecoense criaram grupo de WhtsApp para mandar fotos dos pertences dos mortos na tragédia (Foto: Fábio Tito/G1)

Fabienne perdeu na tragédia o marido, o fisiologista Luiz Cesar Martins Cunha, o Cesinha, de 47 anos. O casal morava em Santo André, no ABC paulista, e Fabienne recebeu a última ligação dele antes da decolagem da Chapecoense em Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, cujo destino final era Medellín, onde o time iria disputar a primeira partida da final da Copa Sul-Americana, contra o Atlético Nacional. Na ocasião, Cesinha disse a ela que fariam um pouso em breve, para reabastecimento. Foi neste trajeto que o avião caiu, sem combustível, deixando 71 mortos e 6 feridos.
“Os pertences do meu marido são a última coisa que guardarei de lembrança, pois os caixões vieram lacrados. E tivemos que lutar por isso, cada dia era uma história diferente e muitas famílias não receberam ainda nada de volta. O pior foi a exposição e a falta de dignidade na forma como expuseram os pertences pessoas sem cuidado, privacidade ou preocupação com a questão emocional. Para eles, podem ser só bagagens. Para nós, são coisas de valor sentimental”, diz Fabienne.
Pelo grupo de conversas instantâneas, em que participavam pelo menos 67 pessoas, as famílias foram informadas também, por duas funcionárias da chapecoense, que parte dos pertences dos mortos foram saqueados no local do acidente e que a comunidade de El Gordo, onde a aeronave caiu, havia se mobilizado para devolver.
As imagens postadas no WhatsApp a doses homeopáticas pelas funcionários do clube durante ao menos duas semanas fizeras os parentes sofrerem, imaginando como a tragédia ocorreu, afirmam os familiares.

Fabienne e Mara relatam dor e pedem dignidade aos familiares (Foto: Fábio Tito/G1)
Fabienne e Mara relatam dor e pedem dignidade aos familiares (Foto: Fábio Tito/G1)

“Eu recebi dos pertences apenas o passaporte e o celular. Não acharam documento, aliança, nada. Daí eu estava na fila do banco quando as meninas da Chapecoense começaram a mandar fotos de pertences no grupo de WhatsApp. Uma das imagens era um sapato preto, com o cadarço aberto. O sapato que meu marido usava quando saiu de casa. É claro que naquele momento eu passei mal, tive que ser atendida no banco. Foi muita falta de dignidade”, afirma Mara Paiva, psicóloga e viúva do comentarista esportivo e ex-jogador Mário Sérgio Pontes de Paiva, que morreu na tragédia.
Mara lembra que, em alguns momentos, os responsáveis por administrarem o grupo de WhatsApp afirmavam que os pertences “haviam acabado” e horas depois, avisavam que iriam mandar novas fotos. “Agora uma nova leva, vamos mandar os eletrônicos”, anunciavam, diz. Em outro momento, à espera de imagens que demoravam, ela foi informada pelo WhatsApp que os funcionários da Chapecoense haviam saído para o almoço, e que os familiares deveriam esperar o retorno para ver as fotos dos pertences.
Outro ponto que ela não entende foi o fato da carteira do seu marido ter sido remetida da Colômbia em uma embalagem fechada, limpa e já nominal, mas o invólucro ter sido aberto e exposto em fotos no WhatsApp. “Uma coisa é eu me preparar psicologicamente para abrir isso em casa, fechada no meu quarto. Outra coisa é receber uma foto destas”, relata Mara.

Embalagem fechada e nominal com carteira de vítima foi aberta e exposta em grupo de mensagens (Foto: Fábio Tito/G1)
Embalagem fechada e nominal com carteira de vítima foi aberta e exposta em grupo de mensagens (Foto: Fábio Tito/G1)

'Tortura', diz irmão da radialista
"A forma escolhida por eles, a meu ver, foi um pouco errada, porque todos visualizavam os pertences de todos, sem privacidade. Era uma tortura sem fim. Cada foto que você abria era uma lembrança, um incômodo. Para eles, não tinha sentimento nenhum, tipo ‘tem que perder tempo com isso’. Mas, para nós, para cada foto que você abria, gelava saber se era do seu parente ou não”, afirma Rangel Agnolin, irmão do radialista Renan Agnolin, que também estava na aeronave.
“Recebemos do meu irmão apenas uma mochila, um boné e dois casacos. A gente não sabe o que aconteceu porque grande parte dos pertences desapareceram. A mala do meu irmão estava trancada e identificada, com as coisas dentro, que sumiram. Outros familiares também afirmaram que viram em vídeos na internet e na TV os pertences que nunca foram entregues”, explica Rangel. Um dos exemplos é a carteira do volante Cleber Santana que a esposa reconheceu em uma reportagem na TV nas mãos de um bombeiro, mas que nunca foi devolvida.
“Como não sabemos como foi o acidente, acabamos fantasiando sobre o que ocorreu. Daí eles mandam imagens da camisas rasgadas, sujas de lama, celular quebrado, um pé só de um chinelo. As imagens que víamos mexem com o psicológico de todos”, salienta Rangel.

Mara, esposa do comentarista Mário Sérgio, recebeu a foto do sapato no marido quando estava na fila de agência bancária (Foto: FabIo Tito/G1)
Mara, esposa do comentarista Mário Sérgio, recebeu a foto do sapato no marido quando estava na fila de agência bancária (Foto: FabIo Tito/G1)

“Eles quiseram fazer de uma forma mais fácil e rápida, mas isso acabou sendo mais traumático. Talvez não tenha sido má intenção”, reflete Graciela, mulher do médico da Chapecoense Marcio Bestene Koury, de 44 anos, que também morreu na tragédia.
“O retorno dos pertences é o fechamento de um ciclo para os familiares. Só queremos dignidade e respeito neste momento, pois estas pessoas foram retiradas do nosso convívio sem que pudéssemos nos despedir. E daí isso nunca encerra, porque toda hora tínhamos que nos deparar com mais fotos”, salienta Fabienne.

Mara fez uma tatuagem em homenagem ao marido, o ex-jogador Mário Sérgio (Foto: Fábio Tito/G1)
Mara fez uma tatuagem em homenagem ao marido, o ex-jogador Mário Sérgio (Foto: Fábio Tito/G1)

Como deveria ser
Especialistas ouvidos pelo G1 apontam quem conforme a Convenção de Montreal, ratificada pelo Brasil e que trata do transporte aéreo internacional, e o Código Brasileiro de Aeronáutica, a obrigação de armazenagem e devolução das bagagens é do operador, no caso, a LaMia, a empresa aérea que realizava o transporte.
“A legislação determina que a responsabilidade pela guarda dos pertences de passageiros é do operador. A Justiça, porém, coloca em alguns casos quem realizou o fretamento do avião ou do voo como corresponsável. Mas isso depende de se a Justiça analisar o caso”, afirma o coronel aposentado da Força Aérea Brasileira Luiz Alberto Bohrer, consultor aeronáutico.
As famílias das vítimas se reuniram e criaram uma associação para tentar dialogar com a Chapecoense. Em uma carta enviada ao clube, manifestaram “indignação com a maneira pela qual a Associação Chapecoense de Futebol está conduzindo a devolução dos pertences das vítimas do acidente aéreo aos seus familiares” e que “apesar de já decorridos seis meses do acidente aéreo, os familiares das vítimas ainda enfrentam um grande sofrimento na busca de reaver os itens pessoais de seus entes queridos”.
A defesa dos familiares, feita pelo Lottenberg Advogados, informou que, "de acordo com a legislação brasileira, os usuários do transporte aéreo têm o direito de ter os pertences devolvidos e que, se isso não ocorre, têm direito a indenização". Os advogados salientam que "a forma como vem sendo realizada a devolução é absolutamente inadequada" e que "parece não ter havido maior preocupação com o estado emocional dos parentes. Não houve cuidado, atenção ou suporte. Pelo contrário, a maneira como o tema vem sendo tratado pelo clube reflete descaso e falta de respeito".
A Blake Emergency informou que realizou a limpeza e retorno das bagagens e demais materiais pessoais recolhidos no local do acidente em solicitação da LaMia, devolvendo-as às autoridades colombianas. “Nós esperamos que este processo tenha trazido um pouco de conforto às famílias pela perda dos entes queridos e àqueles feridos e aos parentes e pessoas que apoiam os atingidos por esta tragédia”, expressou a empresa.
Em nota ao G1, a Chapecoense informou que os pertences foram transportados a Chapecó "após quase seis meses de burocracias que dificultaram a liberação dos mesmos" e que o Clube "moveu forças de forma imensurável para a recuperação, a identificação, a catalogação, o transporte e - agora - a entrega dos pertences aos familiares das vítimas, tratando o assunto com extremo comprometimento, responsabilidade e preocupação, por entender que as bagagens carregam muito além de bens materiais".
O clube disse ainda que alocou os pertences em um batalhão da polícia de Chapecó, por questões de segurança, e que iniciou contato com os parentes para a devolução individualizada das bagagens.

Chapecoense divulga nota informando que tratou assunto com responsabilidade (Foto: Reprodução/G1)
Chapecoense divulga nota informando que tratou assunto com responsabilidade (Foto: Reprodução/G1)

Apoio psicológico
Graciela reclama da falta de apoio psicológico e emocional por parte do time às famílias. O médico Koury deixou duas filhas, de 11 e 5 anos, que sabem o que ocorreu, mas que nem sempre entendem a ausência do pai no dia a dia. A Graciela fazem eco as demais viúvas, que entendem que o clube de futebol “se apropriou” da tragédia para si, “para se tornar a fênix que ressurge”, mas que, segundo elas, não deu apoio e atenção necessárias para as pessoas atingidas pela tragédia, entende Mara, que perdeu o marido, o comentarista Mário Sérgio.
“O clube se apropriou do acidente como marketing, mas nossos familiares estavam presos lá e não tiveram a chance de sair e os perdemos. O acidente é das famílias, só queremos ser tratados com respeito.”, salienta Mara.

Grupo de WhatsApp foi criado para compartilhar fotos dos pertences dos mortos recolhidos (Foto: Fábio Tito/G1)
Grupo de WhatsApp foi criado para compartilhar fotos dos pertences dos mortos recolhidos (Foto: Fábio Tito/G1)

“As meninas ficaram sem pai. Muitas famílias tiveram que trocar de casa, estão passando dificuldades, porque perderam quem colocava o pão na mesa e agora estão abandonadas. O clube se preocupou e deu prioridade com outros assuntos e acabou esquecendo os familiares”, salienta Graciela. Ela não recebeu a carteira e os documentos do marido de volta e ainda teve problemas em relação a isso: falsificaram documentos e cheques e conseguiram um empréstimo em nome da vítima.

Acidente com avião da Chapecoense (Gnews) (Foto: GloboNews)
Acidente com avião da Chapecoense (Gnews) (Foto: GloboNews)

Infográfico mostra detalhes da queda da aeronave (Foto: Arte/G1)
Infográfico mostra detalhes da queda da aeronave (Foto: Arte/G1)

Fonte: G1

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