segunda-feira, maio 27, 2013

Jacqueline Brazil teve os braços deslocados pelo pai, foi expulso da igreja e assumiu o travestismo

Jacqueline Brazil teve os braços deslocados pelo pai, foi expulsa da igreja e assumiu o travestismo. Foto: Divulgação
A igreja evangélica estava lotada, naquele domingo comum de mormaço e orações, para ver o pastor mais querido. O fervor das preces teatrais, com falas e gestos efusivos amortizando o sofrimento individual, prorrogava o ponto alto da noite. Poucos sabiam o que aconteceria minutos adiante.

Mas o suor na testa e a camisa molhada, que já apresentava dois tons, eram sinais de que o mestre da cerimônia estava na iminência de executar o plano que transformaria o culto em algo inesquecível. Pelo menos para um dos presentes, que ouviu o pedido de silêncio geral e a convocação para subir ao púlpito com desconfiança.

O convite surpreendeu Jackson Silva de Oliveira. “Agora peço aos irmãos que nos deem às costas, que olhem para a saída”, orientou a voz soberana. Ele recebera um bilhete anônimo que acusava o jovem de 15 anos de ser um degenerado por intercambiar manifestações carnais com gente do mesmo sexo em salas e corredores da sede da congregação. A expulsão sumária foi concretizada com a revelação da história para todos os presentes. “Minha mãe não parou de chorar um minuto”, diria o maldito, anos depois.

Humilhado e sem entender o episódio que nem a natureza, nem Freud explicam, Jackson ganhou o mundo. “Eu era virgem e entendia que ali era o lugar onde se pregava o amor. Não sabia o que era paixão e tesão, como estavam dizendo. Na verdade, eu era muito temente a Deus”. O pai, que já deslocara os dois braços do filho, quando este tinha cinco anos e já apresentava trejeitos afeminados, ampliou a penitência ao vetá-lo em casa. “Fui morar na rua”. Precisamente no centro de João Pessoa/PB, onde seria abordado por um homem mais velho, que assumiu o lado paternal em sua criação. “Ele foi um anjo para mim. Me deu casa, comida e educação”. Nessa época, relações com mulheres foram testadas e entrar para a Marinha virou uma opção interessante. “Íamos a prostíbulos com frequência. Foi ali naquele meio que eu descobri minha homossexualidade”. E o primeiro amor, que não foi uma cafetina ou uma meretriz, mas um colega de farra que correspondeu àquela volúpia, no começo dos anos 1980.

Dez anos depois, um acidente de trabalho (detalhes omitidos) forçaria uma reserva prematura. As sequelas auditivas acabaram com o sonho de chegar a oficial. Com 27 anos de idade, ele estava aposentado e livre para sofrer uma metamorfose ensaiada em sua mente. “Eu me sentia homossexual, mas só quando fui morar no Rio é que me descobri travesti”. A vitória em um concurso de beleza gay, em 1994, foi o estopim para a transformação. “Quando me vi arrumada feito mulher, senti que era aquilo que queria para minha vida”. Longe da opressão familiar (o pai dizia que preferia ter um filho marginal) e do conservadorismo nordestino, Jackson virou Jacqueline Brazil, persona popular entre militantes pró-minorias em Natal, para onde voltou, em 2000, enfim órfão de pai e mãe. No currículo, uma faculdade de Psicologia inconclusa e a patente de 3º sargento reformado. Com essas credenciais, ela recebeu a reportagem d’O Jornal de Hoje em sua casa, um apartamento de três quartos no terceiro andar de uma galeria comercial na Cidade Alta, dividido com uma sobrinha adulta quase filha. “Ela mora comigo desde que nasceu”.

Nascida em Campo Grande, município do Oeste Potiguar conhecido até 1991 como Augusto Severo, Jacqueline Brazil exige ser tratada pelo interlocutor na 3ª pessoa do pronome pessoal do caso reto (ela). “É um direito que conquistamos, de sermos tratados como gênero feminino”.

A presidente da Associação de Travestis Reencontrando a Vida (Atrevida) defende causas como a efetividade do nome social nos órgãos públicos, a realização da revista policial feita por agentes mulheres, o direito de utilizar banheiro feminino em todos os lugares, bem como capacitação para o mercado de trabalho. “Uma travesti não tem como se esconder, como os gays e lésbicas. Tá na cara a condição dela. Por isso, desde cedo elas sofrem preconceito, o que quase sempre faz com que elas abandonem os estudos para viver de prostituição ou subempregos” – segundo dados levantados pela própria Atrevida, cerca de 70% das travestis e transexuais norte-riograndenses são analfabetas. Ela garante nunca ter feito programa e ser respeitada por vizinhos. “Nunca usei short curto, nem fui de fazer farra na minha casa. Sempre tive relacionamentos sérios, como agora que estou há cinco anos com a mesma pessoa”.

Simples afazeres para um heterossexual viram tormentos para uma travesti. Fazer compras, usar banheiro ou hospital público requer uma paciência constrangedora. “Não temos uma vida plena. Vivemos de subterfúgios. Não queremos o terceiro banheiro, como propôs a UFRN. Isso criaria um novo gueto. Queremos poder usar o banheiro feminino, pois é como nos sentimos. A mulher é muito mais aberta para os travestis. Ao contrário dos homens. Entrar no banheiro masculino é até perigoso. Sempre alguém assedia de forma grosseira, sem respeito algum. Nos hospitais, a mesma coisa. Temos que ser atendidas por mulheres”.

À base de antidepressivos, Jacqueline se recupera de um Acidente Vascular Cerebral ocorrido dois anos atrás, durante o tratamento de um câncer no estômago que deformou o olho direito, parte da boca e deixou uma série de limitações. “Nunca me envolvi com drogas, mas gosto de tomar minha cerveja e fumar um cigarrinho. Só que hoje faço isso com moderação”. Pensamentos suicidas alimentam perguntas sobre a dor incessante. “Me tranco no quarto e pergunto o que eu fiz para merecer isso”.

O medo da violência é um dos pilares do trabalho à frente da Atrevida. Casos de agressão e morte que envolve travestis são corriqueiros – segundo Jacqueline, foram sete assassinatos, em 2012. “É um crime de ódio que vamos debater no 2º Encontro de Travestis e Transexuais [do Estado]“. Marcado para acontecer entre os dias 06 e 08 de junho, no Praiamar Hotel, o evento pretende dialogar com a sociedade que isola os desiguais. “É fácil alguém na rua jogar fezes, urina, pedras ou xingar uma travesti. Por isso, quando tem casos como esse [travestis acusados de roubar e esfaquear supostos clientes em Ponta Negra] sinto como se tivesse perdido 12 anos de trabalho. Não compactuamos com isso, que só aumenta o estigma, o preconceito contra a gente. As pessoas precisam nos respeitar. Podem até não gostar, mas têm que me aceitar como ser humano”. Outra bandeira que agita é da campanha pelo Disque 100, número que acata denúncias de violência contra a população LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros).

Uma rosa tatuada em sua mão esquerda relembra os tempos de Marinha. Tempos em que viagens pela Venezuela, Argentina, Suíça, Senegal e África do Sul contribuíram para a formação de um capital intelectual diferenciado. “Devo muito à Marinha, não só por viver com a aposentadoria que ela me paga, mas por sempre ter me tratado com respeito”. O sotaque indecifrável, misto de carioca com sertanejo, revela andanças em busca de um porto seguro. “Não é mole viver deprimida, com todo mundo olhando esquisito e lhe recriminando. As pessoas matam nosso sentimento com esse comportamento. Não adianta eu ser íntegra, honesta e respeitosa com todos. A condição de minoria nos joga na marginalidade. Avançamos nas leis, mas o olhar pouco mudou. Acredito que Deus tem um propósito em nossa vida. Deixo na mão dele para que me dê forças de aguentar tanto sofrimento. Antes de morrer, quero ver travestis serem respeitadas como cidadãs. Essa será minha luta até o fim”.

Reprodução Cidade News Itaú

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