terça-feira, fevereiro 08, 2022

Em recurso, coordenador de estudo aponta falsidade, calúnia e ilegalidade em nota do governo contra veto ao 'kit Covid'

O médico Carlos Roberto Ribeiro de Carvalho protocolou na sexta-feira (4) recurso administrativo para tentar reverter uma portaria do Ministério da Saúde: um dos secretários mais importantes da pasta derrubou a decisão de um conselho de especialistas contra o uso do 'kit Covid' para tratamento em pacientes no Sistema Único de Saúde (SUS).


São Paulo - Manifestante participa de protesto contra o governo do presidente Jair Bolsonaro, em 02/10/2021 — Foto: Carla Carniel/Reuters/Arquivo


No texto obtido pela TV Globo, Carvalho faz críticas duras aos argumentos e à conduta de Hélio Angotti Neto, secretário que assina a portaria. O recurso foi apoiado, em nota oficial (veja íntegra abaixo), pela Associação Médica Brasileira (AMB). "(...) O veto do secretário (...) aparenta ser gesto arbitrário e unilateral que constitui grave desserviço ao enfrentamento assertivo da Pandemia Covid no Brasil", escreveu a AMB.


Autor do recurso contra a portaria, Carlos Carvalho é referência na área e é professor Universidade de São Paulo (USP). Ele foi responsável por coordenar os estudos feitos ao longo de 2021 pelo grupo de especialistas que redigiu as diretrizes posteriormente aprovadas pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias ao Sistema Único de Saúde (Conitec).


Os estudos foram solicitados pelo próprio ministro Marcelo Queiroga. A falta de um protocolo nacional unificado para tratar pacientes de Covid foi uma questão levantada pela médica Ludhmilla Hajjar logo após recusar o convite para o cargo de ministra da Saúde.


Ao longo de 2021, especialistas se reuniram e definiram os capítulos das diretrizes, todos aprovados pelo Conitec. As aprovações foram por unanimidade, exceto no último capítulo sobre o kit covid, quando representantes do ministério foram derrotados na votação.


Entre outros pontos, o documento final é contra o uso de remédios como cloroquina, azitromicina, ivermectina e outros no combate ao coronavírus, o chamado kit Covid. Apesar de aprovado em votação no conselho, as diretrizes foram rejeitadas pelo governo federal.



"Essa é a primeira vez que se tem conhecimento na história da Conitec que um secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde reprova diretriz aprovada pela Comissão", afirma Carvalho.

Em um documento de 101 páginas, Carvalho rebate em detalhes a nota técnica usada por Hélio Angotti Neto, secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde do Ministério da Saúde, para recusar a decisão do Conitec contra o uso do kit Covid. A decisão vai ao encontro da postura do presidente Jair Bolsonaro, que fez da defesa do uso de medicamentos sem eficácia comprovada uma de suas bandeiras na pandemia.


Bolsonaro com uma caixa de cloroquina, medicamento sem eficácia comprovada contra a Covid, em foto de setembro de 2020.. — Foto: REUTERS/Adriano Machado


Efetividade dos medicamentos

O primeiro ponto da nota do secretário Hélio Angotti refutado no recurso de Carvalho trata da alegada possibilidade de se medir a efetividade de medicamentos por meio de "estudos observacionais", onde os cientistas não intervêm, por exemplo, separando pacientes em grupos ou modificando protocolos para testar hipóteses. No recurso, Carvalho diz que estudos observacionais não se prestam a definir eficácia de medicamentos.


"A comprovação de eficácia se dá por meio de ensaios clínicos randomizados. (...) O secretário inverte a lógica científica com a sua afirmação ao suprimir e ignorar a comprovação de eficácia de medicamentos como pré-requisito para a efetividade", afirma Carvalho no recurso.

Carvalho também afirma que "é falsa a informação apresentada na nota técnica de que ‘não há nenhum medicamento incorporado no SUS, até o presente momento, para prevenir ou tratar especificamente casos de Covid-19'". O médico lembra que as diretrizes tratam de medicamentos que são usados no âmbito hospitalar e os hospitais podem ser ressarcidos pelo SUS.


Em seu recurso, o professor da USP lembra que medicamentos “reposicionados”, como a hidroxicloriquina/cloroquina, têm ineficácia comprovada para a Covid-19.


"Digno de nota, a hidroxicloriquina/cloroquina esteve associada ao aumento de eventos adversos e essas informações estão apresentadas nas Diretrizes que estão disponíveis no site da Conitec. Para o secretário, as melhores evidências disponíveis apontam claramente a possibilidade de benefício terapêutico, mas ele não apresenta os estudos que comprovem a eficácia de medicamentos como a hidroxicloraquina/cloroquina", afirma Carvalho.



Oportunidade de salvar vidas

Na nota técnica analisada no recurso, o secretário argumenta que não se poder perder a "oportunidade de salvar vidas (...) utilizando todos os recursos que mostrarem um nível aceitável de segurança junto a uma expectativa de bem para o paciente.”


Carvalho questiona se a demora de seis meses em avaliar o parecer da comissão não pode ter causado perda de vidas pela falta de orientações aos médicos sobre como tratar os pacientes.


"Também reiteradamente o Secretário comete ilegalidade ao ignorar a Lei 12.401/2011 que, como já mencionado anteriormente, determina que a Conitec levará em consideração, necessariamente as evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento, produto ou procedimento objeto do processo. Além disso, o Secretário faz juízo de valor sobre o “nível” aceitável de segurança, que não lhe compete e nem apresenta critérios objetivos para tal afirmação", afirma Carvalho.


"O secretário infringiu o Código de Ética do Servidor Público, uma vez que aprovada por unanimidade pela plenária da Conitec, o secretário não fez a publicação no DOU (Diário Oficial da União), retardou por mais de seis meses sua decisão e mesmo tendo percebido que surgiram novos artigos científicos que poderiam gerar atualizações importantes, não pediu qualquer revisão do documento aprovado", afirma Carvalho.


Conflito de interesses

Um dos tópicos rebatidos por Carvalho é quando Angotti lista que o grupo que elaborou o parecer aprovado pelo seria composto por "diversos membros" de entidades entre as quais algumas "se manifestaram reiteradas vezes peremptoriamente contrários ao princípio da autonomia médica de prescrever ou não medicamentos para pacientes na fase viral da doença".


Em seu texto, Angotti cita Associação de Medicina Intensiva do Brasil (AMIB), Associação Brasileira de Medicina de Emergência (ABRAMED), Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) e Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC).


"O secretário embasa de forma caluniosa seu argumento", afirma Carvalho. "Em nenhum momento a AMB ou suas filiadas foram “reiteradas vezes peremptoriamente contrários ao princípio da autonomia médica”, e essa falsa acusação serve de frágil alicerce para o argumento equivocado do secretário".

Carvalho usa posicionamento do próprio Conselho Federal de Medicina (CFM) para lembrar que a autonomia médica é subordinada a protocolos científicos, tem limites condicionados a escolas, a métodos e experimentações prévias e nunca pode ser entendida como liberdade profissional irrestrita.


"Na verdade se verifica que a real motivação do secretário em levantar esse tópico é puramente expor de forma seletiva alguns especialistas que fizeram parte do Grupo Elaborador", explica Carvalho.


Carvalho diz ainda que, na seara de 'conflitos de interesses de ordem ideológica e política' falta ao secretário o mínimo de transparência pessoal".


"Haja visto a total falta de independência científica e técnica, visto ter acatado de forma quase literal o requerimento nº 228/2021 do Departamento de Gestão do Trabalho em Saúde do Ministério da Saúde, (DEGTS/SGTES/MS) cuja responsável tem como nome Mayra Isabel Correia Pinheiro, conhecida defensora de medicações sem comprovação de eficácia contra a Covid-19", argumenta no recurso.


"É de causar espanto como a Nota Técnica de 25/01/2022 do secretário Hélio Angotti Neto que veta as diretrizes científicas aprovadas pela Conitec é na verdade um documento idêntico ao referido requerimento DEGTS/SGTES/MS de 22/11/2021, ou seja, ficam explícitos os conflitos de interesses de ordem ideológica e política do atual gestor responsável pela SCTIE em “apadrinhar” uma nota técnica anterior de um departamento distinto do Ministério da Saúde, que não tem competência para a decisão sobre novas tecnologias, mostrando também o completo despreparo técnico e científico do responsável pela pasta."


Nota de apoio da AMB

Veja abaixo a íntegra da nota:


"Nota Oficial 001/2022: CEM COVID_AMB


Apoio ao Recurso Administrativo impetrado pelo Prof. Dr. Carlos Roberto Ribeiro de Carvalho contra a Portaria SCTIE/MS nº 2 de 20/01/2022


A Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde (SCTIE/MS) publicou, em 20 de janeiro de 2022, portaria que “torna pública a decisão de não aprovar” os pareceres “Diretrizes Brasileiras para o Tratamento Medicamentoso Ambulatorial e Hospitalar do Paciente com Covid-19”.


Frente à decisão, tomada de forma unilateral na pessoa do seu secretário, Dr. Hélio Angotti Neto, foi impetrado recurso administrativo em 4 de fevereiro 2022 pelo Prof. Dr. Carlos Roberto Ribeiro Carvalho, responsável designado pelo Ministro da Saúde para coordenar os trabalhos de elaboração das referidas diretrizes.



Nesse recurso, compartilhado de forma confidencial e sigilosa com o Comitê Extraordinário de Monitoramento da Covid-19 da Associação Médica Brasileira (CEM COVID_AMB), o Prof. Carlos Carvalho, em denso trabalho científico de mais de 100 páginas, refuta em detalhes todos os argumentos equivocados utilizados na portaria da SCTIE/MS para a não aprovação das diretrizes.


A respeito do extenso documento científico preparado pelo Prof. Carlos Carvalho, o CEM COVID_AMB julga fundamental destacar que os pareceres técnicos rejeitados resultaram de árduo trabalho elaborado ao longo de meses por um grupo constituído à convite do próprio Ministério da Saúde, composto por notáveis cientistas, médicos, professores universitários e pesquisadores de diversas instituições e de sociedades médicas do Brasil. Muitos destes componentes convidados pelo MS pertencem inclusive aos quadros do CEM COVID_AMB.


Esses pareceres técnico-científicos haviam recebido aprovação definitiva em plenárias da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC), sendo que não há registro anterior de vetos de decisões da CONITEC por qualquer outro secretário da SCTIE/MS na história do MS.


No documento protocolado pelo Prof. Carlos Carvalho, na última sexta-feira, em recurso administrativo junto ao MS fica patente que a não aprovação definida pela SCTIE/MS carece de subsídios técnicos e científicos que a suportem.


Registre-se, por oportuno, que esta mesma visão já havia sido tornada pública pelo próprio CEM COVID_AMB no Boletim 007/2022 - Nota de Repúdio à Portaria SCTIE/MS nº 4 de 20 de janeiro de 2022.


Dessa forma, o CEM COVID_AMB reitera apoio irrestrito ao recurso impetrado pelo Prof. Carlos Carvalho e ao parecer “Diretrizes Brasileiras para o Tratamento Medicamentoso Ambulatorial e Hospitalar do Paciente com Covid-19” por avaliar que o veto do secretário da SCTIE/MS aparenta ser gesto arbitrário e unilateral que constitui grave desserviço ao enfrentamento assertivo da Pandemia Covid no Brasil.


São Paulo, 7 de fevereiro de 2022."


Fonte: g1

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