quarta-feira, julho 29, 2020

Novo estudo sobre 'imunidade coletiva' desperta controvérsia

Um novo estudo de pesquisadores portugueses e brasileiros, divulgado sábado no repositório MedRxiv, começa a despertar controvérsia entre os cientistas e lança mais combustível numa das questões mais inflamáveis da pandemia: quantos infectados são suficientes numa população para que os imunes impeçam a circulação do vírus – e a transmissão comece a definhar naturalmente?

Entrega de cestas pela Fundação Amazonas Sustentável em Manaus. A heterogeneidade no contágio pode explicar o recuo da epidemia no Amazonas — Foto: Reprodução
Entrega de cestas pela Fundação Amazonas Sustentável em Manaus. A heterogeneidade no contágio pode explicar o recuo da epidemia no Amazonas — Foto: Reprodução

Tal proporção – conhecida como “limiar de imunidade coletiva” ou, num anglicismo desajeitado que conquistou certas manadas, “limiar de imunidade de rebanho” – ganhou vulto descomunal em debates motivados mais por interesse político que científico.

Não é difícil entender por quê. Se o limiar estiver entre 50% e 70%, como sugerem os cálculos baseados nos modelos matemáticos tradicionais, o risco de uma segunda onda de contágio e de um novo morticínio é muito maior, já que, mesmo nas cidades mais afetadas, o novo coronavírus não contaminou mais de 25% da população.

Se, ao contrário, tal limiar for mais baixo, como sugere o novo estudo, então o pior já pode ter passado em vários lugares – e devemos nos preocupar mais com as regiões menos afetadas pela primeira onda, onde quase toda a população ainda permanece suscetível ao contágio.

“Estou confiante de que o trabalho que fizemos está bem feito, é rigoroso e tem um papel importante em todo esse debate”, me disse a autora principal do estudo, a biomatemática portuguesa Gabriela Gomes, das Universidades do Porto e Strathclyde, na Escócia. O trabalho foi divulgado em versão preliminar e submetido a uma revista científica de prestígio, mas ainda não atravessou o trâmite de revisão pelos pares que antecede a publicação. “Espero que seja avaliado por sua qualidade científica apenas, não pelas ilações políticas.”


O trabalho sugere uma nova forma de interpretar os dados da pandemia. Explora uma lacuna dos modelos matemáticos tradicionalmente usados na epidemiologia. Formula uma versão mais sofisticada e abrangente, resultado de mais de dez anos com pesquisas em doenças como malária ou tuberculose, agora aplicadas à Covid-19.

Nenhum modelo, importante lembrar, é perfeito. Modelos são apenas simplificações da realidade. Como já escrevi, devem ser levados a sério, não ao pé da letra. Servem para que compreendamos os mecanismos que influem na dinâmica de fenômenos complexos. Não são oráculos capazes de fazer previsões infalíveis, muito menos armas contra adversários nas redes sociais.

Desde que o britânico Ronald Ross concebeu o primeiro modelo matemático para entender as epidemias, o limiar de imunidade coletiva emerge quase como decorrência das premissas a respeito do contágio. O principal parâmetro postulado por Ross em sua obra fundamental de 1911, reproduzido em todos os modelos desde então, é conhecido como “número básico de reprodução” ou pela sigla R0 (lê-se “erre-zero”). O limiar de imunidade coletiva deriva de R0 por meio de um cálculo simples e fácil de entender (que explico neste post anterior).

Como já repetido um sem-número de vezes ao longo da pandemia – inclusive num vídeo da chanceler alemã, Angela Merkel, que se espalhou mais rápido que o vírus –, o tal R0 representa quantos infectados cada doente contamina em média, no início da pandemia. É uma média teórica para o instante inicial do contágio na população. À medida que o tempo passa, esse indicador varia, de acordo com as medidas tomadas para reduzir a transmissão (como distanciamento social ou uso de máscaras), mas também porque a quantidade cada vez maior de imunes não contrai mais o vírus (o número de reprodução passa a ser identificado, dependendo do gosto, apenas como R, Rt ou R-efetivo).


O problema intrínseco a qualquer um desses Rs é que se trata de médias – e qualquer média esconde mais do que revela. Nem todos os infectados transmitem o vírus ao mesmo número de pessoas. Uns podem contaminar dezenas ou até milhares – são conhecidos como superdifusores (leia mais aqui). Outros, isolados, podem não transmitir a ninguém. É justamente nesse ponto que os cálculos feitos com base nos modelos tradicionais falham. Populações são heterogêneas. Tomar a média como representativa do todo necessariamente leva a aproximações grosseiras.

Eis que entram em cena os modelos mais sofisticados, em que a taxa de contágio, o famigerado R-qualquer-coisa, varia não apenas ao longo do tempo, mas também de indivíduo para indivíduo, para dar conta daquilo que os cientistas chamam de “heterogeneidade” da população. Tal variação pode derivar de fatores biológicos (certos indivíduos podem correr menos risco por razões genéticas ou por terem tomado certas vacinas). Ou de fatores sociais (o risco é menor para quem sai menos de casa, conversa menos ou tem uma vida social menos intensa).

Há toda uma fauna de modelos que tentam lidar com a heterogeneidade, todos eles com hipóteses distintas a respeito da dinâmica do contágio. Desde pelo menos fevereiro, quando a pandemia começou, a questão é objeto de debate intenso na comunidade acadêmica. Um desses modelos, publicado por cientistas suecos na revista Science em junho, despertou controvérsia por concluir que o limiar de imunidade coletiva poderia, sob certas condições, estar em torno de 37% (leia mais neste post). Editores da própria Science fizeram ressalvas ao modelo em editorial.

O modelo proposto no estudo de Gabriela é anterior e mais sofisticado que o dos suecos. Sua conclusão é ainda mais provocativa. Nos quatro países para os quais os cientistas simularam suas hipóteses (Portugal, Espanha, Bélgica e Reino Unido), o limiar ficou abaixo de 20%. Na primeira versão do trabalho, ainda era uma conclusão apenas hipotética. Na versão publicada no último fim de semana, ela é corroborada pelos números reais, verificados em cada um dos países analisados.


Nenhuma das estimativas para o limiar de imunidade coletiva, como reza o mantra da modelagem, pode ser levada ao pé da letra. Mas as premissas devem ser levadas a sério, por revelar um aspecto da realidade que pode ter influência em políticas públicas. A ideia que embasa o modelo de Gabriela, embora matematicamente sofisticada, é muito fácil de entender. Nas próprias palavas dela:

– Numa população suscetível, uns são mais suscetíveis que os outros. O vírus não afeta as pessoas aleatoriamente. Vai infectar primeiro os mais suscetíveis, então eles desenvolvem alguma imunidade, portanto saem do grupo dos suscetíveis. Há então um fenômeno de seleção. Os que sobram são aqueles que no início tinham menos suscetibilidade. Há uma redução da suscetibilidade média. Ela é dinâmica. À medida que epidemia se desenvolve, essa suscetibilidade média vai diminuindo, vai desacelerando o crescimento de casos, vai fazer a epidemia menor. O limiar de imunidade coletiva portanto também vai ser menor.

Noutras palavras: aqueles que tinham mais chance de pegar a doença são os primeiros a pegar e desenvolvem imunidade. Na população que sobra vão ficando aqueles com menos chance, seja por fatores genéticos, seja por sociais. Isso não depende, necessariamente, das medidas adotadas para evitar o contágio, como distanciamento ou uso de máscaras. A sutileza do modelo está justamente em separar o efeito dessas medidas da heterogeneidade intrínseca à população, medida por outra variável além do R, chamada “coeficiente de variação”, ou CV.

“Assumimos que, a partir de certo momento, as intervenções para tentar controlar a epidemia, como distanciamento social, máscaras, todas essas coisas, vão gradualmente intensificando, até chegar a um máximo, digamos o lockdown. Depois vão aliviando gradualmente”, diz Gabriela. Seu modelo separa os efeitos dessas intervenções (incorporado no R) e os da heterogeneidade (no CV). “Temos as duas coisas no modelo, o coeficiente de variação e o distanciamento social. É preciso separar os processos um do outro, e nosso modelo é capaz de fazer isso.”

O limiar de imunidade coletiva não depende, diz Gabriela, das intervenções. O que depende é o tamanho da epidemia. O modelo não diminui, portanto, a importância dessas intervenções, mas as coloca noutro contexto. “Não é porque se atingiu o limiar da imunidade coletiva que tudo para. Ela é atingida quando a epidemia está mais ou menos no pico, mas até terminar ainda acontecem casos dali abaixo”, diz Gabriela.

É justamente na descida da curva que máscaras e distanciamento se tornam cruciais para eliminar todo e qualquer contágio. “Sem as medidas de distanciamento, o número de casos seria praticamente o dobro do limiar da imunidade coletiva. Com as medidas de distanciamento, conseguimos terminar a epidemia com poucos mais casos”, afirma Gabriela. “Graças a essas medidas, portanto, o tamanho da epidemia vai ser bem menor.”

Outra sofisticação que o modelo adota é não supor que a imunidade adquirida no contágio seja perene. É uma hipótese consistente com os relatos de reinfecção ou de pacientes que manifestam sintomas por períodos longos. Os infectologistas ainda investigam a qualidade da imunidade propiciada pela cura da doença – e ela é considerada perfeita em quase todos os outros modelos. No de Gabriela, um dos parâmetros permite variar o percentual de imunidade conferida pela infecção.

Surpreendentemente, a conclusão a respeito do limiar de imunidade coletiva varia pouco de acordo com esse parâmetro. Se o coeficiente de variação, o CV, estiver entre 2 e 4 – como nos quatro países analisados no estudo –, as curvas são todas muito próximas e convergem para perto umas das outras. “Mesmo que a imunidade não seja total, os resultados não se perdem”, afirma Gabriela.

O CV é, segundo ela, a principal variável desprezada pelos outros modelos. Quanto maior, mais heterogênea a população. Gabriela fez as contas para o estudo dos pesquisadores suecos e chegou a um CV inferior a 1. Nessas condições, o limiar sobe imediatamente para perto de 40%. A heterogeneidade é, também, a explicação preferida dela para a dinâmica diversa da pandemia em diferentes regiões:

– É muito tentador dizer que isso explica o que aconteceu em Manaus (na Amazônia, a epidemia refluiu quando o contágio havia atingido por volta de 20% da população). Não só em Manaus, mas também em Nova York. Nos estados americanos mais afetados no início, os casos continuaram a descer depois de as medidas de distanciamento serem aliviadas, dos protestos contra racismo e de tudo o que continua a acontecer. Nos estados que não tinham sido afetados no início, os casos continuam a subir. Qual a diferença? Em Portugal tivemos situação parecida. O Norte foi mais afetado no início. Medidas de distanciamento pararam o crescimento da epidemia no Sul. Então interromperam as medidas de distanciamento, o Norte continuou a descer, e houve ressurgência de casos em Lisboa e no Sul. Qual a diferença? Tem que ser algo muito forte para levar a um padrão tão grande. Acho que é a imunidade de grupo. Não me ocorre uma outra explicação que tenha efeito tão marcante.

Em princípio, o modelo de Gabriela pode ser usado para analisar a evolução da epidemia em qualquer país. Ela diz que só escolheu Portugal, Espanha, Reino Unido e Belgica porque eram aqueles para os quais havia dados disponíveis no momento em que iniciou o estudo. “Já tínhamos atingido o pico na Europa, e o Brasil estava no início”, diz. “Tencionamos fazer agora para Brasil e Estados Unidos. É aplicável em qualquer país.” As conclusões dependerão do coeficiente de variação e da capacidade de seu modelo de refletir a realidade. Não é porque podem ser otimistas que necessariamente estarão erradas. Nem certas.

FONTE: BLOG DO HELIO GUROVITZ

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