domingo, agosto 24, 2014

Conflito transforma Gaza em um grande lar de refugiados

Nader al-Masri, atleta olímpíco palestino, abraça o pai diante do que sobrou da casa onde moravam Beit Hanoun, na Faixa de GazaSinais reveladores dos desabrigados estão por toda parte em Gaza.
Sandálias pequenas estão espalhadas no tapete de entrada de
um escritório de advocacia no primeiro andar da rua principal do centro de Gaza: os pezinhos pertencem a crianças que estão morando lá dentro desde 20 de julho. No andar de cima, em um laboratório odontológico onde Mohamed Efranji produz coroas e capas para dentes, há bandejas de cebolas, batatas, pimentas vermelhas e tomates para alimentar as três famílias que agora chamam o lugar de lar.

No Salão Rimal, no final do campo de refugiados da Praia, dois cabeleireiros levaram seus 10 irmãos menores para ficar lá. Na terça feira, a mãe das crianças estava fazendo macarrão em um fogareiro na sala espelhada dos fundos, onde as noivas costumam se arrumar. Na esquina, atrás de um cobertor colorido que cobria a porta de uma lan house fechada há muito tempo, mais 13 pessoas se estabeleceram em dois cômodos de pé direito alto, sem água encanada e sem tomadas que funcionem.

Inúmeras famílias penduraram lençóis e xales em todas as árvores e postes disponíveis no terreno do Hospital Al Shifa para se proteger do sol; no acampamento improvisado, um bebê de três meses dormia em um berço forrado com papelão em uma manhã recente. 
No domingo, mais de 235 mil pessoas ainda estavam espremidas em 81 das 156 escolas da ONU, onde as aulas deveriam começar no sábado.

"As chances de que isso aconteça são nulas", reconheceu Scott Anderson, vice-diretor da agência que as administra.

Depois de um mês de confrontos violentos entre militantes israelenses e palestinos que mataram mais de 1.900 moradores de Gaza, a extensão do cessar-fogo temporário até segunda-feira foi um grande alívio. Mas com cerca de 11 mil lares destruídos e muitos outros severamente danificados, a crise habitacional e humanitária de Gaza está apenas começando, e a incerteza quanto à duração e aos termos de uma trégua mais duradoura dificulta os planos de recuperação.

"Nosso destino, no final, será a rua", lamentou Alia Kamal Elaf, 35, mãe de oito filhos, que está abrigada em uma escola desde que fugiu do bairro de Shejaiya no leste da Cidade de Gaza, logo no início da incursão terrestre de Israel em 17 de julho.

A destruição foi bem mais severa do que nas rodadas anteriores de ataques israelenses, especialmente em Shejaiya; na cidade de Beit Hanoun, que faz fronteira ao norte; e no vilarejo de Khuza'a, no sudeste, onde pouca coisa restou. Líderes palestinos planejam pedir US$ 6 bilhões para doadores internacionais em uma conferência marcada para setembro, mas há muitos problemas que o dinheiro não é capaz de resolver. 

Wissam Nassar/The New York Times)
Palestinos esquentam água em fogueira em meio a escombros em Beit Hanoun
O governo regido pelo Hamas, que administrou Gaza desde 2007, renunciou em junho, mas a Autoridade Palestina ainda precisa assumir o controle de seus ministérios. Então quem vai avaliar os danos e coordenar a reconstrução?

Israel baniu a venda de materiais de construção para projetos privados, citando preocupações de segurança. Várias das fábricas de cimento de Gaza, e outras que produzem portas, janelas e pisos de cerâmica foram reduzidas a escombros. 

Muitos funcionários de ajuda acham que as doações em dinheiro forneceriam o alívio mais eficiente: as pessoas poderiam consertar as casas que ainda estão de pé, alugar novos espaços ou compensar as despesas dos parentes que as recebem. Mas os Estados Unidos não darão dinheiro diretamente para as pessoas porque é muito complicado determinar se elas têm ligações com o Hamas, que é considerado uma organização terrorista por Washington.

"Receberemos muito dinheiro para reconstruir casas que não podemos reconstruir, mas não receberemos dinheiro para ajudar as pessoas a ajudarem a si mesmas", disse Robert Turner, diretor das operações da Agência de Assistência aos Refugiados da Palestina, que fornece educação, saúde e outros serviços para 70% dos moradores de Gaza classificados como refugiados. "Não se pode construir abrigos em toda parte se o material de construção não estiver disponível no mercado local. E não está, e será que um dia estará?" 

Turquia, Qatar e outras nações ofereceram enviar milhares de casas sobre rodas. Mas Turner vê isso como um desperdício e um passo na direção errada. Cada unidade custa cerca de US$ 15 mil, diz ele; o subsídio de aluguel padrão da agência em Gaza é de US$ 150 por mês, ou US$ 3.600 por dois anos. Uma casa nova, permanente, pode ser construída por US$ 40 mil.

"Há três problemas", disse Turner. "As pessoas as odeiam, elas são muito caras, e isso acaba formando guetos."

Os irmãos Hamouda estão em uma tenda fornecida, segundo eles, por um "benfeitor" na quarta semana de sua estadia. Metade do chão é coberta com papelão, a outra metade com tapetes. No canto há uma garrafa velha de refrigerante com molho de pimenta forte, pela metade, um item comum em Shejaiya.

"Contamos os dias que estamos aqui na tenda", disse o mais novo dos três homens, Moamar, 42, que está no 35º dia.

"Aqui, cada dia equivale a um ano", disse o irmão do meio, Abdullah, 45.

O mais velho, Muhammad, 48, disse que se o cessar-fogo durar, ele irá para o local onde ficava a casa da família e "esperaria por uma tenda - colocaria a tenda na rua e ficaria lá." 

Mas Moamar discorda.

"Esperaremos aqui até que eles nos tragam uma solução", disse ele. "Minha opinião é que devemos ficar aqui, como uma forma de pressão."
Suas mulheres estão na casa de parentes, assim como outros 200 mil desabrigados, segundo as estimativas. Mesmo esta, considerada a melhor alternativa, tem seu lado ruim: mulheres e meninas religiosas devem usar mangas compridas e cobrir os cabelos todo o tempo porque não estão em suas próprias casas; muitas não podem ficar no quintal ou na varanda das casas porque não conhecem seus vizinhos.


Aqueles que conseguiram encontrar algum lugar para alugar estão pagando o dobro do preço anterior à guerra: um grupo de 12 pessoas estava tirando móveis dos escombros em Beit Hanoun um dia desses para levar a um apartamento no quarto andar do complexo Sheikh Zayed, sem elevador, alugado por US$ 200 por mês. Hani Zeyara, que é de Shejaiya e dormiu quatro semanas no acampamento improvisado do Hospital Shifa e num parque, disse que finalmente encontrou uma loja vazia: 24 metros quadrados por US$ 100 por mês.

Abdel al-Ghoula, 28, montou uma barraca improvisada na frente de uma pilha de escombros que costumava ser a casa onde ele morou desde os 13 anos, do outro lado da rua que passa paralela à fronteira leste de Gaza. Ele usou fios de metal para amarrar tábuas à cerca de ferro em frente à rua, e então amarrou tecidos coloridos, muitos deles rasgados ou chamuscados, à madeira. Dentro, pallets de madeira foram apoiados em cima de pedras e cobertos com almofadas velhas, formando bancos à sombra. 

As tamareiras, parreiras, oliveiras, figueiras, amendoeiras e limoeiros se foram. Um arco de pedra e um portão de ferro retorcido são basicamente as únicas coisas que ficaram de pé no local que, segundo Ghoula, um prédio de quatro andares abrigava seis famílias – 50 pessoas – bem como várias lojas no primeiro andar. Ghoula tinha duas máquinas de costura e fazia sapatos femininos. 

"Estes são os restos do meu computador", disse ele, pegando um pedaço de plástico preto. "Esta é a bolsa da minha filha." Era vermelha com detalhes brilhantes; ela tem quatro anos.

Ele colocou uma placa na pilha de escombros: "lar da família al-Ghoula", para afastar os ladrões, talvez atrair ajudantes ou apenas sinalizar para os vizinhos: "nós ainda estamos aqui".

"Precisamos alugar uma casa, mas ainda vimos sentar aqui todos os dias", disse Ghoula enquanto um estranho com um carrinho puxado a burro parou para beber água fresca. "Para receber as pessoas. Para contar para o mundo: nós estamos enraizados em nossa terra, até a morte."

Fonte: Uol

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