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terça-feira, março 02, 2021

Coronavírus: 'No México, não é que não soubessem o que fazer com a pandemia, é que decidiram não fazer'

Um ano depois que o primeiro caso de Covid-19 foi confirmado no México, muitos estão analisando quais foram os acertos e erros da estratégia do governo do país.


O México foi o primeiro país da América Latina a iniciar a vacinação contra a covid-19 e aplicou mais de 2 milhões de doses entre seus 126 milhões de habitantes — Foto: Getty Images/BBC


Uma das mais duras críticas vem da microbióloga mexicana Laurie Ann Ximénez-Fyvie, doutora em Ciências Médicas pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e chefe do laboratório de Genética Molecular da Faculdade de Odontologia da Universidade Nacional Autônoma do México.


Autora de Danos irreparáveis: a gestão criminosa da pandemia no México, ela diz que o epidemiologista Hugo López-Gatell, que é subsecretário de Saúde e responsável pela reação do país à Covid-19, se deixou levar por critérios "mais políticos do que científicos".


Ximénez-Fyvie reprova a atuação do chamado "czar do coronavírus" por não ter adotado uma estratégia para conter a transmissão e apostar na chamada "imunidade de rebanho", ainda que isso não tenha sido falado abertamente por autoridades.


Também questiona por que o governo não aplicou restrições às fronteiras aéreas para controlar a entrada de pessoas no país, ainda que o Executivo federal insista que a contribuição dos viajantes internacionais para o aumento de casos no México foi "pequena".


A especialista faz a seguir um balanço deste primeiro ano de pandemia no México.



BBC News Mundo - Por que a senhora qualifica a gestão governamental da pandemia de "criminosa"?


Laurie Ann Ximénez-Fyvie - Inicialmente, achei que a gestão errou por falta de informação. Agora, infelizmente, percebo que não é que eles não soubessem o que fazer, é que decidiram não fazer. Por isso coloco a palavra "criminosa" no subtítulo do livro, porque saber como uma situação pode ser sanada e quais são as medidas que devem ser tomadas para impedir uma catástrofe que está levando centenas de milhares de pessoas à morte e não tomar essas decisões... bem, eu chamo isso de criminoso. 


A especialista critica duramente a gestão do combate à pandemia pelo subsecretário mexicano de Saúde, Hugo López-Gatell — Foto: Gobierno de México/BBC


BBC News Mundo - A que decisões está se referindo?


Ximénez-Fyvie - Hugo López-Gatell é uma pessoa que tem preparo e conhecimento para lidar com um problema desta natureza.


O que pode ser feito para deter a pandemia é algo básico em epidemiologia. É sabido que o controle da imigração e da circulação das pessoas controla a propagação dos contágios, é sabido que os casos devem ser identificados para isolá-los e interromper a transmissão.


A situação que está ocorrendo foi fruto de uma decisão consciente de colocar em ação uma estratégia, sabendo que isso levaria tantas pessoas à morte.


BBC News Mundo - A senhora defende que o México não apostou na contenção de contágios, mas sim em conseguir a chamada "imunidade de rebanho" da população, mas o governo nunca confirmou isso.


Ximénez-Fyvie - Sim, nunca foi falado abertamente, mas tem sido dito repetidamente que o México não busca uma estratégia de contenção, mas uma estratégia de mitigação. Então, é a mesma coisa. E tem sido uma mitigação frouxa, por isso o confinamento nunca foi obrigatório, nem o uso de máscaras faciais.


O México nunca teve uma estratégia para impedir infecções. Para isso, deve-se monitorar as fronteiras, fazer o rastreamento dos contatos e detectar o maior número de casos assintomáticos, que são aqueles que disseminam a doença, e isolá-los. Mas o México testa apenas casos com sintomas bastante avançados, por isso nunca sabemos quantas infecções realmente existem.


Eles não tentam conter os contágios, eles apenas permitem que as pessoas continuem a se infectar, mas tentam controlá-los ao longo do tempo para não saturar os hospitais. É isso que o México faz.


O presidente Andrés Manuel López Obrador foi questionado por não usar máscara em eventos públicos — Foto: Gobierno de México/BBC


BBC News Mundo - Em seu livro, a senhora compara López-Gatell ao médico nazista Josef Mengele, o que tem gerado uma grande polêmica.


Ximénez-Fyvie - Acho que fui mal interpretada aí. Mengele queria matar pessoas intencionalmente. Não acho que López-Gatell tivesse esse objetivo. Ele simplesmente tomou decisões que politicamente pareciam controlar o problema, e suas decisões levaram pessoas à morte, embora ele não tivesse a intenção de matá-las.


O que quis comparar foi a figura do homem vestido de médico que, seguindo uma tendência política, incorre numa falta de ética na sua profissão de médico e de cientista. Definitivamente, não considero López-Gatell um assassino ou psicopata. Acho que ele foi um cientista irresponsável e negligente, o que é diferente.


Como um médico pode descartar o uso preventivo da máscaras? Essa é uma medida política, porque o presidente se recusa a usá-las. Também insiste em rejeitar, contra todas as evidências científicas, a medida de monitoramento e controle da imigração para o país. Todos os países estão fazendo isso, e agora exigem testes negativos para viajantes que entram no país ou também quarentenas.


O México nunca teve isso porque não quer o fardo de não ter turistas, não quer essa reclamação que tem um impacto econômico.


Mas um cientista que fala que uma medida muito lógica e comprovada não funciona não está falando como epidemiologista, está falando como político, defendendo a posição do presidente que prefere não tomar estas medidas.


BBC News Mundo - A situação em muitos outros países também é desastrosa. O que diferencia a gestão do México?


Ximénez-Fyvie - É claro que muitos países lidaram mal (com a pandemia): Brasil, Argentina, Espanha, Estados Unidos principalmente... Mas o fato de que muitos o tenham feito mal não isenta o México de sua responsabilidade.


Mas se há algo que torna o problema no México pior é que outros líderes, como (a chanceler alemã) Angela Merkel ou (o premiê britânico) Boris Johnson viram que o problema em seus países era muito sério e que não estavam sendo capazes de controlá-lo. Então, eles pediram desculpas à população por terem subestimado o problema e não terem agido na hora certa e imediatamente se corrigiram. Houve mais confinamento, mais testes, mais máscaras.


A diferença é que, no México, nem se reconhece que algo ruim está acontecendo, ou seja, eles sempre insistem que a pandemia já está sob controle e que estamos saindo dela. Não há nenhuma indicação aqui de que se pretende mudar ou melhorar sua estratégia.


BBC News Mundo - Como avalia a posição pública em relação à pandemia do presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador?


Ximénez-Fyvie - Depois que López Obrador foi infectado com Covid-19, havia duas opções. A de Boris Johnson, que após ser infectado mudou a estratégia do Reino Unido ao ver que a doença era terrível e que mais precisava ser feito para controlá-la; ou a de Donald Trump, que depois de infectado continuou a descartar todas as opiniões científicas e a dizer que a pandemia não era tão grave, que se recuperou mesmo sendo mais velho e obeso.


Em sua primeira aparição após o contágio, López Obrador disse: "Não vou usar máscara porque já peguei". Ele fez o mesmo que Trump: enviou uma mensagem à população de que, se você já foi infectado e sobreviveu, não precisa fazer nada. Sua atitude foi deixar claro que não mudaria nada, pelo contrário, redobrou as atitudes negligentes e irresponsáveis ​​que tinha antes de se infectar. É uma verdadeira vergonha que tenha sido assim.


BBC News Mundo - É tudo culpa do governo? Que parte da responsabilidade recai sobre a população?


Ximénez-Fyvie - Quando você diz a alguém no México para não ser irresponsável e colocar uma máscara, eles falam: "Não, desculpe, o presidente diz que não é necessário".


A população nunca teve informações claras das autoridades para se prevenir. Depois, o governo quer passar a responsabilidade para a população, dizendo que as pessoas continuam a fazer festa.


Bem, as pessoas dão festas porque essa é a mensagem que receberam, de que isso não é sério, que estamos no caminho certo, que já estamos achatando a curva e domando a pandemia. A população mexicana pode não ter feito as coisas tão bem quanto poderia, mas podemos realmente responsabilizar a população quando as mensagens que recebeu das autoridades foram tão erradas?


BBC News Mundo - Houve alguma reação ou resposta do governo após a publicação do livro?


Ximénez-Fyvie - Nenhuma. Procurei o governo da Cidade do México para ver se havia algo em que pudesse contribuir para os esforços contra a pandemia na capital, e a resposta que recebi é que eles não querem saber de mim.


Eles pensam que sou o inimigo, mas não sou. Não critiquei o governo, estou criticando a gestão da pandemia.


BBC News Mundo - Ainda há tempo para a mudança de estratégia contra a Covid-19 no México?


Ximénez-Fyvie - Claro, ainda existem centenas de milhares de vidas que podem ser salvas. Os Estados Unidos estão mostrando isso. O país que pior lidou com a pandemia no planeta agora está revertendo isso com um presidente que escuta os cientistas, que disponibiliza os recursos e a infraestrutura necessários. E seus números começam a melhorar.


Portanto, temos demonstrações de que isso pode ser feito. Vale a pena lutar por vidas.


BBC News Mundo - Considerando sua qualificação como "criminosa" da gestão mexicana, acha que alguma autoridade acabará sendo responsabilizada pelo que aconteceu nesta pandemia?


Ximénez-Fyvie - Alguém teria que ser responsabilizado. O que aconteceu no México com a pandemia é um verdadeiro crime. Mas, o que quer que façam, nada vai ressuscitar os mortos.


Fonte: G1

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