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quinta-feira, fevereiro 22, 2018

'Tentamos ignorar, mas sabemos que elas existem', diz agente penitenciário sobre as facções nos presídios do RN

Juscélio Álvares é agente penitenciário há oito anos (Foto: Cleber Dantas/Inter TV Cabugi)"Antes do massacre de Alcaçuz, as facções eram separadas por pavilhão. Hoje em dia, tentamos ignorar a existência delas, mas a gente sabe que elas existem. A gente tenta fracionar e dividir por alas, para evitar outras chacinas ou derramamento de sangue”.

O relato acima é do agente penitenciário Juscélio Álvares, que há 8 anos atua no sistema prisional potiguar. Atualmente, ele trabalha em um Centro de Detenção Provisória da Grande Natal, onde mais de 100 detentos aguardam julgamento. Ao G1, ele falou sobre o dia a dia na vida de um carcereiro, como o Estado vem lidando para manter as facções sob controle – pelo menos dentro das unidades – como a existência delas afeta o cotidiano dos agentes e de suas famílias, além dos riscos, orgulhos e decepções da atividade.

“Aqui no estado temos duas principais, o Sindicato do Crime do RN e o PCC. Ainda não sei se a Família do Norte chegou por aqui, mas as principais são essas duas”, listou. As duas facções, vale lembrar, foram as protagonistas do mais sangrento episódio do sistema prisional do estado, o massacre de Alcaçuz, em janeiro de 2017, quando 26 detentos foram brutalmente assassinados.

Apesar de admitir que as duas facções ainda marcam território dentro do sistema, Juscélio amenizou a situação: “Hoje, não há tanta interferência. As ditas lideranças estão sob total controle. Elas interferem mais no comportamento deles (dos próprios presos), e eles que têm mais tensão”, afirmou.

O agente também revelou quando, em que determinado momento, essas facções criminosas começaram a ter relevância e interferir mais intensamente na segurança pública. Segundo ele, as facções existem no RN há bastante tempo, “mas foi nos últimos quatro ou cinco anos que percebemos um alavancamento, que os presos se organizaram melhor, mais doutrinados, com códigos para a conduta deles”.

"As ações deles, relacionadas e focadas no crime, são muito mais rápidas, mais radicais, mais audaciosas, quer seja dentro das unidades prisionais ou nas ruas. Um exemplo desses códigos é a tomada de territórios fora e dentro dos presídios, bairros que pertencem à facção A ou B, divisão de pavilhões e alas”
Espinhos
Em determinado momento da entrevista, Juscélio lembrou que no Brasil agentes penitenciários são mortos por exercerem suas funções públicas. E isso, segundo ele, exige muitos cuidados. “Ser agente penitenciário é algo muito complexo, algo muito espinhoso”, disse ele.

“Temos que escolher onde morar, prestar a atenção em quem são os vizinhos, não tomar o mesmo caminho para o trabalho, para o supermercado, para ir deixar os filhos na escola. Toda a vida é notoriamente mudada”.

Ainda de acordo com a opinião do agente, trabalhar no sistema prisional é algo que ainda está longe dos anseios da população. “Todo mundo tem um sonho na vida. Quero ser policial, quero ser médico, quero ser piloto. Mas, ninguém sonha em ser agente penitenciário. Vivemos em um limbo. Usamos colete, temos arma, andamos de viatura com giroflex, mas não somos polícia. A figura de agente penitenciário é quase uma figura desfocada. É uma atividade extremamente espinhosa, extremamente complexa”, reafirmou.

"Um preso chega pra você e diz: olha, eu tô passando mal. E você diz: olha, não tem remédio. Ele diz: a comida veio estragada ou faltou comida. E você diz: não tenho. Ele diz: um cara me esfaqueou dentro da cela. Você diz: não tenho como levar. Olha, a cela que cabe um me botaram com 10 ou com 20. Quem você acha que ele vai questionar, ou ter raiva ou ter ódio? É do juiz, do promotor, do governador? Não! É de mim. Então isso é extremamente espinhoso pra gente. As pessoas que estão de fora não enxergam, acham que nós temos fama de carrasco, de torturador, de algoz, mas não é assim"

Orgulho
Para o agente, o momento que dá orgulho é quando o trabalho dá certo. “É quando nossa missão é cumprida, quer seja numa escolta, fazendo uma intervenção. Essa parte nos orgulha”, ressaltou.

Frustração
Mas, também há momentos de decepção: “É quando você vê que você é incapaz de desempenhar aquela função, aquele papel que você queria fazer. É quando o Estado falha, quer seja não enviando um equipamento, não dando condições para você. É quando vemos o encarcerado reclamando de algo que ele está certo, e você não pode fazer nada”.

“Não estou romantizando nem poetizando a coisa não. Preso tem que ser tratado com rigor, mas também com repeito”
Família
Sobre a família, Juscélio disse que ela sofre tanto quanto e que também é preciso adequar a uma vida diferenciada. “A família tem que se adequar ao nosso dia a dia, ao nosso cotidiano. Temos que escolher o lugar que a gente mora, até o tipo de carro que vai andar, o caminho que vai traçar, os ambientes. Então, tudo isso tem que ser meticulosamente explorado e visto. Você é quase um agente secreto”, disse.

"Um professor não lembrar dos seus alunos, mas os alunos vão lembrar dos professores. O agente não vai lembrar dos presos, mas o preso vai sempre lembrar dos agentes. Então temos que tomar alguns cuidados, colocar um óculos, uma balaclava, para tentar preservar nossa identidade, porque não é fácil"
Motivos
Um dos motivos da crise carcerária, problema que afeta o país inteiro, tem algumas explicações na opinião de Juscélio Álvares. Uma delas é a lotação das carceragens. “Não há como manter o controle de um determinado número de presos se você não tem um número efetivo de agentes para desenvolver essa ação. Efetivo é fundamental para que o nosso trabalho tenha êxito”, reforçou.


“Quando um preso cai na carceragem, se ele tem seus direitos renegados, todo seu ódio e seu rancor cai sobre nós. Então somos a principal ameaça, somos inimigos deles. Então, quando falta o Estado, estamos lá como testa de ferro. E quando isso ocorre, acontece uma insatisfação generalizada. E quando se tem uma insatisfação generalizada, aparece uma mente pensante. E essa mente pensante vai fazer a cabeça de todo mundo, e isso vai fazer nascer uma facção criminosa. Nascendo a facção acontece o enfraquecimento de toda a estrutura de segurança pública do estado”
Solução
O agente também falou de soluções. E, para ele, somente o fato de prender o criminoso não vai resolver o problema.

“Muitas vezes achamos que, ao prender um criminoso e jogar numa cela, estamos solucionando o problema. Ao contrário, alí ele vai se especializar. Às vezes a Polícia Militar faz um excelente trabalho ostensivo, a Polícia Civil faz um excelente trabalho investigativo, mas tem o trabalho frustrado com a fuga de um preso, por exemplo, ou quando no lugar que só cabe um preso se coloca 30, 40 ou 50. Eles vão se unir e formar uma facção e tudo isso explode e tudo isso volta para a sociedade”.
Para Juscélio, a questão é mesmo política. “Tudo na vida tem causa e efeito, mas a causa é justamente o sistema político que nós temos. Não só uma crise política, nem somente uma crise financeira ou econômica, mas uma crise ética e moral. Jogamos o tsunami e o tsunami volta para nós. É isso o que os políticos e os partidos estão fazendo com a gente. Tão ruins, tão piores, tão nocivos. Isso é perigoso. Isso para uma nação é extremamente degradante”, avaliou.

Então, qual a solução? “Para o ambiente prisional a solução é dar trabalho para estas pessoas, ocupar a mente delas, ocupar ao máximo, para que elas trabalhem, façam projetos, desenvolvam profissões lá dentro, para que elas ressarçam as vítimas que elas fizeram. Alavancar o país, alavancar a economia. Isso seria um bom começo”, concluiu Juscélio, fechando com a frase:


“Cabeça vazia é a oficina do diabo”
Total de presos no estado: 7.212

Total de agentes penitenciários: 1.476

Relação de presos por agente: 4,9

O RN cumpre a resolução de 2009:

"A proporção mínima desejável é de um agente para cinco presos, segundo uma resolução de 2009 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Ela foi baseada na proporção média dos países europeus e tem o objetivo de servir de critério para a análise dos projetos encaminhados pelos estados ao Ministério da Justiça para a construção de unidades penais com recursos da União. De acordo com a pasta, a norma continua válida hoje"

Fonte: G1

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