Um vídeo de um minuto publicado no YouTube em julho mostra duas jovens sauditas caminhando na esplanada à beira-mar na cidade de Jidda, na costa do mar Vermelho,
enquanto um grupo de jovens as segue e assedia até deixá-las visivelmente incomodadas.
O vídeo se tornou sucesso viral e desatou um raro debate público sobre os direitos da mulher em um país que se distingue como um Estado que mantém um dos mais severos regimes mundiais de segregação entre os sexos.
Os ativistas dos direitos da mulher e comentaristas criticaram duramente os homens do vídeo por assediar as mulheres, que usavam os longos e tradicionais trajes negros conhecidos como abayas e traziam os rostos cobertos por véus.
A indignação pública, expressa na mídia e na internet, resultou em uma investigação policial, e veículos de mídia ligados ao Estado reportaram que seis dos rapazes envolvidos foram detidos e interrogados.
Mas, a seguir, as coisas passaram por uma estranha reviravolta.
Dias mais tarde, surgiu outro vídeo, supostamente mostrando as mesmas duas jovens. Ele foi compartilhado via sites de notícias semioficiais e veiculado nos sites de canais privados como a Rotana TV, que sugere que as imagens foram gravadas pouco antes de as mulheres serem abordadas.
No novo vídeo, elas passeiam pela esplanada à beira-mar em um quadriciclo enquanto os jovens assistem. Uma delas lança na direção deles um "agal", a corda preta usada pelos homens sauditas para afixar seus tradicionais turbantes quadriculados. Os homens caem na risada e começam a zombar do gesto.
De repente, as mulheres deixaram de ser encaradas como vítimas pelos espectadores, que passaram a acusá-las de "indecência" e de provocar os homens.
Ainda que na Arábia Saudita trabalhem juntos em lugares como bancos e hospitais, homens e mulheres solteiros estão proibidos de conviver socialmente —em público ou em espaços privados—, e as mulheres aderem a um código de vestimenta ultraconservador que em muitos casos envolve cobrir completamente o rosto.
As sauditas não têm autorização para dirigir automóveis, e dirigir um quadriciclo é visto como igualmente ofensivo nas províncias mais conservadoras.
Mas, em Jidda, o polo mais cosmopolita do reino e portal de entrada marítima para milhões de peregrinos muçulmanos, algumas mulheres não cobrem os cabelos, e as abayas nem sempre são pretas.
Existem calçadões nos quais homens e mulheres, em trajes negros de corte mais esportivo, podem caminhar a passo rápido uns ao lado dos outros —espaços públicos que não existem para os cidadãos médios sauditas da capital do reino, Riad.
O consultor jurídico Yehia al-Shahrani disse ao site de notícias Sabq, ligado ao Estado, que acredita que as mulheres agiram de maneira "sedutora e tentadora".
O consultor declarou que seria injusto investigar e possivelmente levar os homens a julgamento "sem que sejam tomadas as mesmas merecidas medidas contra aquelas que os seduziram e levaram isso a acontecer, que são as duas moças".
Ele também culpou os pais das duas jovens por permitir que elas fossem a um lugar público onde poderiam estar em companhia de homens.
O debate que emergiu por conta dos vídeos é significativo —tanto por trazer a questão à luz quanto por expor as dificuldades que as sauditas enfrentam em público.
O Ministério da Justiça informa que 3.982 casos de assédio foram registrados nos dois últimos anos no país. No entanto, esse número também inclui casos de agressão e abuso sexual, porque na Arábia Saudita não existe definição legal do que constitua "assédio sexual".
Os ativistas que defendem os direitos da mulher na Arábia Saudita e os comentaristas mais liberais do país afirmam que o assédio sexual é comum demais no reino e apelam por uma lei que tornaria crime esse tipo de ação. Não importa que uma saudita mostre ou não o rosto, ela é sempre vista "como objeto de assédio", disse a ativista Tamador Alyami à agência de notícias Associated Press.
"O assédio é algo que se vê diariamente", disse. "É algo esperado e aceito. É algo que se tornou muito comum. Só causa controvérsia quando termina capturado por uma câmera."
A mídia social e o YouTube exibem vídeos de todo o reino que parecem mostrar mulheres sendo assediadas. Em um deles, na cidade de Taif, centro da Arábia Saudita, uma jovem é seguida agressivamente por diversos rapazes enquanto caminha perto de um shopping.
A polícia informou que dois homens foram detidos depois do incidente, ainda que nem a jovem nem a sua família o tivessem denunciado.
Ainda que as sauditas tenham conquistado o direito de votar e de disputar postos eleitorais em eleições municipais, que ocorrem neste ano, suas vidas continuam a ser dominadas por seus parentes homens.
Sob as "leis de guarda", uma mulher precisa de permissão dos parentes homens, em geral o pai ou marido, para viajar ao exterior ou trabalhar, e muitos hospitais privados requerem esse tipo de permissão antes de realizar tratamentos médicos em mulheres.
Muitos integrantes da poderosa liderança religiosa do país argumentam que a guarda masculina protege as mulheres e dizem que, se elas tivessem direito a dirigir automóveis, isso as exporia a assédio sexual, entre outros pecados.
Khaled Almaeena, jornalista e colunista de Jidda, disse que essas restrições em última análise não protegem as mulheres. Ele diz que a educação religiosa deveria enfatizar os fundamentos islâmicos básicos de distinção entre o bem e o mal.
Almaeena é uma das figuras públicas que vêm apelando ao Conselho Consultivo, ou Shura, um órgão legislativo que no ano passado teve mulheres incluídas em sua composição pela primeira vez, que recomende ao gabinete e ao rei Salman uma lei contra o assédio sexual.
Thuraya Ebrahim al Arrayed, membro da Shura e também defensora dessa iniciativa, disse que, se uma lei como essa não for criada, a definição do que constitui assédio continuará elástica demais, e as penalidades por abuso sexual e estupro estarão a critério dos juízes que interpretam as leis islâmicas, dotados de amplo escopo.
Uma lei "esclareceria os detalhes porque puniria qualquer assédio, quer seja uma agressão sexual a menores ou adultos, incluindo agressão a crianças e menores dentro ou fora de suas casas", disse à Associated Press.
Mas a discussão na Shura sobre um projeto de lei contra tudo que constitui "assédio sexual" foi abandonada no ano passado por decisão de membros que argumentaram que uma lei como essa poderia encorajar as mulheres a usar roupas mais provocantes em público e a conviver com os homens.
O projeto de lei continua parado no Conselho Consultivo, à espera de nova tramitação.
Na ausência de leis, não fica claro sob que rubrica os homens captados em vídeo em Jidda e Taif poderiam ser processados, ainda que existam leis amplas contra a perturbação da ordem pública e a violação dos códigos islâmicos de conduta, que foram usadas em casos passados.
Há quem argumente que a polícia da moralidade saudita, conhecida como "muttawa" ou Comissão para a Proteção da Virtude e Prevenção do Vício, deveria aplicar com mais rigor a segregação entre homens e mulheres, especialmente em locais como a esplanada de Jidda.
Almaeena diz que as normas, como a que requer que mulheres caminhem acompanhadas por guardiões homens se saírem a passeio ou para cuidar de suas tarefas, tiveram efeito adverso, fomentando nos homens, desde muito jovens, atitudes negativas quanto às mulheres.
"É uma mentalidade estabelecida", disse Almaeena. "Eles [os homens] não são ensinados já desde a infância a respeitar as mulheres."
Fonte: Folha de São Paulo
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