"Um fenômeno inesquecível/ Santa Cruz atravessou/ Com tantos credenciados/Quem na área se alojou/Foto local que não brilha/Das setenta e cinco famílias/Nenhuma pessoa entrou." Esse verso faz parte de um longo poema escrito pela poeta e professora aposentada Francina Mota, para criticar o fato de nenhuma pessoa da localidade de Santa Cruz ter podido participar da inauguração da barragem Santa Cruz, em 2002.
O evento, que contou com a participação dos então presidente Fernando Henrique Cardoso e governador Garibaldi Filho e outras autoridades, era apenas para convidados e não incluía nenhum morador de lá. O pior é que eles só souberam disso quando tentaram se aproximar da área.
"Parece uma coisa simples, mas para nós foi uma tristeza", disse Francina Mota, hoje com 68 anos, que tem a barragem no quintal de casa. De acordo com ela, o esquema de segurança era tão grande que na tarde da inauguração ninguém da comunidade pôde mais sair de casa. Há relatos de pessoas que tinham ido à feira de Umarizal (que acontece às segundas-feiras) e tiveram de ficar esperando na estrada até acabar a cerimônia para poder chegar em casa. "Seu Estácio João de Paiva estava trabalhando em seu cercado e quando foi almoçar não teve mais permissão de voltar ao serviço", relata Francina.
Parece que esse momento, tão lastimado pelas famílias de Santa Cruz, era um aviso de que, aos moradores, só sobraria a distância das águas. A própria família de dona Francina, que vive, em parte, da agricultura, nunca se beneficiou da água da barragem, a não ser pelo rio que passa perene com meio metro. Tanto é que, toda casa das sete ou oito comunidades que circundam a barragem só no município de Apodi, tem uma cisterna para captar água de chuva. O reservatório banha ainda terras de Itaú, Severiano Melo e Umarizal.
O agricultor Pedro Viana da Costa, "Neto da Cápua", sabe bem o que é olhar para o espelho d'água e não ter o que beber. Ele, assim como toda a comunidade do sítio Cápua, distante uns 10km de Santa Cruz, depende do programa carro-pipa do Governo Federal para se abastecer. "O Exército é quem faz o abastecimento, mas como é muita família, nem sempre a água dá pro mês", disse.
A sorte é que na propriedade vizinha existe um açude que demora a secar, senão os bichos passariam sede. O pequeno manancial pertence a seu Idalino Dantas Panplona e foi construído pelo seu pai (já falecido), em 1937. Abastecido pela água da chuva, a pequenez do alagado é um contraste frente a gigante Santa Cruz, que se impõe no horizonte. Para seu Idalino, a barragem foi uma grande obra, mas até agora não beneficiou ele ou sua comunidade em nada. "Aqui nós continuamos plantando de sequeiro e bebendo água de carro-pipa", disse.
Na comunidade de Lagoa Rasa, distante pelo menos 20km do sítio Cápua, no sentido da cidade de Apodi, a situação não é diferente. Segundo a agricultora Antônia Gilvânia Mota, por lá passa o rio Apodi, mas a água não serve para o consumo humano. "Nós temos a mesma vida de antes da barragem. Por enquanto, os únicos beneficiados não são daqui do Vale do Apodi", concluiu.
Um projeto que não passa de um projeto
"A barragem Santa Cruz não foi feita para melhorar a vida de ninguém. Ela foi feita para atender a demanda do agronegócio." Essa é a opinião do presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Apodi, Francisco Edilson Neto, corroborada pelos agricultores Francisco José Morais Junior e Francisco Analdo de Oliveira. Para Edilson, tem muita coisa em jogo nesse projeto que foi pensado para beneficiar os que vivem nos perímetros irrigados.
Ele é um dos líderes do movimento campesino que se opôs ao projeto do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), que queria investir R$ 280 milhões para levar a água da barragem para irrigar a Chapada do Apodi a mais de 30km de distância e numa altura superior a 60 metros. A proposta foi aprovada e os recursos só não foram liberados devido à intervenção dos movimentos sociais, que fez repercutir esse assunto internacionalmente.
Edilson Neto defende que a ideia seja remodelada à proposta do professor João Abner, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Ele sugere o aproveitamento de todos os potenciais para reduzir custos e atender uma demanda maior de pessoas de forma sustentável, e sem precisar desapropriar ninguém, como propõe o Dnocs.
Abner quer a irrigação do vale por gravidade, visto que a água da barragem está a 57 metros de altura, perenizar também o rio Umari, beneficiando Caraúbas e Felipe Guerra e implantar uma miniturbina para geração de energia, viabilizando a irrigação da chapada. "Além disso, com uma medida governamental é possível implantar a tarifa verde, reduzindo enormemente o custo de energia dos pequenos produtores", disse Edilson Neto.
O projeto, chamado de Padre Pedro Neefs, numa referência ao padre holandês (ainda vivo) que primeiro implantou ações sustentáveis no Vale do Apodi, quer evitar a repetição de erros comuns no Brasil. A pesquisa de João Abner constatou que, nos últimos 40 anos, a União investiu mais de R$ 3 bilhões para implantar, no Nordeste, cerca de 90 pequenos, médios e grandes projetos de irrigação. Hoje, dos 250 mil hectares infraestruturados por essa montanha de dinheiro público, apenas 100 mil produzem.
Outro exemplo vem do Ceará, onde a maioria dos 14 perímetros de irrigação implantados e administrados pelo Dnocs apresenta precária infraestrutura, baixa produção e, em muitas áreas, a pobreza ronda os lares dos colonos. "Cada projeto tem seus problemas "próprios, mas a dificuldade de irrigação, a falta de assistência técnica e a precariedade de canais, de diques, de drenos, das estradas internas e a baixa produtividade são um quadro comum às áreas de produção", diz o professor.
Fonte: DN
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