Um funcionário da Comunidade Terapêutica Kairos Prime, onde um paciente de 38 anos morreu e cinco funcionários foram presos, em Embu-Guaçu, afirmou que as agressões contra os cerca de 90 internos eram frequentes.
"Cheguei a presenciar algumas agressões e a intervir. As ordens partiam de dois funcionários com consentimento da diretora. Eu comecei a combater e enfrentar os três. Se o paciente colocava duas calças, por exemplo, eles consideravam que ia fugir e aí já batiam. Eu já os vi baterem em paciente por quebrar uma regra, que é normal porque o cara vai para quebrar e se reeducar. Se quebrasse uma regra já era espancado".
"Eu estava disposto a tirar as agressões ali dentro. Mas me senti impotente e revoltado. Sensação é de revolta. Mas tenho consciência que fiz minha parte tentando impedir o que eu via", complementa.
Ainda conforme o funcionário, as agressões eram socos na costela e cabeça. "Eram sempre socos na costela, cabeça. Padrão era amarrar. Eu mesmo já vi batendo nas mãos de um paciente com madeira. Eu não presenciei, mas pegaram um paciente e espancaram tanto que ele defecou na roupa".
Morte e prisão
Cinco funcionários, entre 26 e 65 anos, foram levados para a delegacia e presos suspeitos de agredirem o interno até a morte com objetos de madeira, entre eles tacos de sinuca. O caso foi registrado como homicídio, sequestro, cárcere privado e tortura.
De acordo com a Secretaria da Segurança Pública (SSP), guardas civis realizavam patrulhamento de rotina, quando foram informados de que Onésio Ribeiro Pereira Júnior teria dado entrada já sem vida e com sinais de violência pelo corpo na Unidade Mista de Saúde (UMS) Municipal.
Os guardas foram até o local e, em contato com os funcionários da clínica, foram informados de que o interno teria fugido e, após ter sido capturado, começou a se sentir mal. Alegaram ainda que, por isso, o homem foi levado até o hospital.
Porém, segundo os médicos, o interno já havia entrado no hospital sem vida. Com isso, diante das contradições, policiais civis da delegacia de Embu-Guaçu foram até a clínica, onde testemunhas contaram que a vítima teria sido agredida e que o local da agressão havia sido lavado para dificultar o trabalho da perícia.
Em entrevista à TV Globo, um dos internos relatou que ouviu a vítima ser agredida. "Espancaram ele de madeira. Amarraram e bateram nele. O meu quarto era em cima do quartinho que ele tava. Nós escutamos tudo...ele gritando: 'pelo amor de Deus para'. Isso aí não pode ficar assim, não pode ficar impune", afirmou o rapaz, que terá a identidade preservada.
Investigação
Na declaração de óbito, segundo apurado pela TV Globo, consta que Onésio sofreu hemorragia subdural disfusa traumática, traumatismo crânio e cefálico e traumatismo raque medular.
"Testemunhas contaram que a vítima já estava usando camisa de força quando, então, os indivíduos, esses administradores da clínica, iniciaram uma sessão de pancadaria, agressões contra a vítima que, segundo essas testemunhas, eram costumeiramente realizadas com barras de ferro, pés de mesa, tacos de sinuca e cabeceira de uma cama", afirmou o delegado Júlio Cesar de Almeida Teixeira.
"As lesões que nós encontramos no corpo da vítima não são passíveis de ser imputadas como lesões de fuga. São claramente lesões praticadas por instrumentos contundentes".
Ainda conforme a polícia, esta foi a segunda morte registrada este ano na clínica. Em março, um jovem de 27 anos foi achado com marcas de agressão no pescoço. Três pessoas foram presas na época.
O diretor da clínica Comunidade Terapêutica Kairos Prime, Ueder Santos de Melo, informou ao g1 na terça-feira (26), por telefone, que acompanhará as investigações e disse que os cinco funcionários foram desligados imediatamente.
"Desligamento total dos funcionários e a Justiça está apurando os fatos. Estou total à disposição da polícia. A unidade nasceu em 2022. É uma unidade nova. Agora, minha preocupação é orientar as famílias. Nunca foi da nossa política ter agressão. Nunca vi como gestor acontecer algo, como muitos estão dizendo. Seria o primeiro a fazer denúncia se visse algo", afirmou.
Interdição
Após a morte de Onésio, a clínica de reabilitação foi interditada pela prefeitura nesta terça-feira (26) por falta de alvará.
Em nota, a prefeitura informou que, após uma inspeção da fiscalização sanitária, foi verificada a irregularidade do espaço e, por isso, foi determinada a interdição.
Ainda conforme o Executivo municipal, uma avaliação dos medicamentos presentes no local será feita, solicitando as respectivas receitas.
Questionada sobre a clínica ter CNPJ ativo desde 2022, a prefeitura esclareceu que o processo de fiscalização é acionado por meio de denúncias ou quando o estado informa a existência de clínicas que precisam ser verificadas.
"No caso da clínica Projeto Kairos, um fator relevante foi a ausência de sinalização, o que tornou a clínica discreta e, consequentemente, passou despercebida pelas autoridades, operando clandestinamente", disse a prefeitura.
Ao g1 e à TV Globo, o diretor da clínica, Ueder Santos de Melo, alegou que estava em processo de regularização e que tinha protocolado todos os documentos solicitando o alvará.
'Que não fiquei impune'
Uma parente de Onésio, que prefere não se identificar, contou que ele foi internado no dia 28 de agosto deste ano após ter recaída com uso de drogas. Ele já havia sido internado em 2020.
"Internamos ele por conta da recaída. O pessoal da clínica foi buscar na casa. Ele era dócil, querido, não era agressivo. Só ia se proteger se batessem nele. Não revidaria nunca", afirmou
Ainda conforme a familiar, Onésio havia contraído sarna recentemente e horas antes de ser comunicada sobre sua morte, havia falado com ele sobre como usar o medicamento.
"Eu falei com ele para ensinar sobre o medicamento. Passou um tempo e me ligaram dizendo que ele queria fugir para ficar com a família. Mas ele não tentou fuga. Foi quando o pegaram e o amarraram. Me ligaram de vídeo e ele chorava muito. Disse que não ia fugir, que só passou na cabeça".
"Quando foi por volta das 15h [de segunda-feira], recebi ligação de que ele estava passando mal e foi levado pro hospital. Quando cheguei, eu conversei com médico que recebeu o corpo e disse que ele estava morto há mais de uma hora".
De acordo com parecer emitido pela clínica referente à evolução do paciente, ao qual a reportagem teve acesso, foi informado que Onésio apresentava "convivência aceitável com os demais acolhidos, equipe e aceitável adesão ao tratamento por internação" e "demonstrava interesse nos conteúdos abordados".
"A gente entrega para que pessoas tirem o vício. É uma clínica paga, com mensalidade, taxas, com consultas psiquiátricas pagas. Gastos chegavam a R$ 2 mil. Ele nunca gritou com ninguém, não fez nada de errado a não ser usar droga. Que isso não fique impune".
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