domingo, setembro 12, 2021

‘Faces Negras’: Daiane dos Santos, de ícone olímpico a referência de empoderamento



Nascida e criada em uma periferia de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, Daiane dos Santos, de 38 anos, se tornou a primeira ginasta brasileira, entre homens e mulheres, a conquistar uma medalha de ouro em uma Copa do Mundo do esporte. Uma, não. Nove!


Ela é ainda precursora de dois movimentos na ginástica artística: o duplo twist carpado, ou Dos Santos I, e o duplo twist esticado, ou Dos Santos II.


Mas essa trajetória brilhante só foi possível depois vencer o racismo, ignorar gente que se recusava a usar até o mesmo banheiro que ela e se agarrar aos conselhos dos seu pais, que a ensinaram a fazer a conta de três. Uma regra brasileira, e não matemática, que diz que negros têm que ser até três vezes melhores em suas áreas.


No mês em que completa 15 anos, o G1 traz uma reflexão sobre temas impactantes para o país e a evolução deles ao longo dos tempos. Na primeira reportagem especial, 'Faces Negras', conversamos com personalidades de variadas gerações que superaram as barreiras do racismo. São relatos de histórias e experiências que envolvem a cor da pele, a luta contra o preconceito, as dificuldades e o orgulho de ser preto. Conheça Adriana, Babu, Daiane, Fábio, Fatou, Glaucia, Isaac, Ivanir e Luciane.



Daiane por Daiane:


Daiane dos Santos: ídolo do esporte também foi atravessada pelo racismo — Foto: Divulgação/Divulgação


“Mesmo tendo parado de competir em 2012, eu estive nas Olimpíadas de Tóquio. Estive no salto da Rebeca Andrade, na garra, na vontade de vencer e na emoção da conquista. Não só eu, mas cada menina e menino preto das periferias desse país se viu representado nela.


A minha emoção, ao comentar sua vitória, foi a emoção de todos nós. Ela era eu, você e tantos outros brasileiros pretos. E vê-la no lugar mais alto do pódio me fez olhar para trás e ver o passado presente ali, e deu uma ponta de esperança no futuro.


Eu já estive ali e tenho orgulho de ver outras meninas, como a Rebeca, mantendo essa porta aberta para outros. Isso é preciso para lembrar que a gente pode, não somos menores, que nossa cor não nos limita a nada.


Falo com propriedade, pois já tentaram me limitar.


Já disseram que eu não servia para a ginástica artística. Eu ouvia: 'Por que você quer fazer ginástica? Por que não faz atletismo? Acho que combina mais com você!' 'Ai, você é muito forte, não serve para ginástica, não combina'.


Por fim, sem velar nada, já tive treinador que não quis trabalhar comigo e já tive 'colegas' de esporte que não queriam nem usar o mesmo banheiro que eu. Mas Dona Magda e o Senhor Moacir, meus pais, me ensinaram a fazer conta de três muito cedo: você pode tudo, você é capaz, mas terá, muitas vezes, que trabalhar três vezes mais para mostrar o seu valor.



E foi isso que eu fiz com a minha teimosia, ou persistência para ficar mais bonitinho (risos), empoderamento, educação e oportunidade!


Foi com a oportunidade que a treinadora Cleusa de Paula me deu, ao me ver brincando em uma pracinha e perceber que eu tinha potencial para o esporte, que eu me agarrei para mostrar o meu talento. Olhei para quem me queria, quem não olhava a cor da minha pele, e fui à luta.


Mesmo tendo começado tarde no esporte, aos 11 anos – o que também era outra exceção para os meus pares –, comecei a ganhar competições e medalhas, e o tratamento começou a mudar. Comecei a ser aceita.


Mas não se engane! Lembra da conta de três? Ela é cruel, porque não basta você ser melhor uma, duas ou três vezes. Você tem que ser melhor sempre! O sarrafo para quem é negro está sempre mais alto. Tem mais cobrança, mais exigência e, se a gente comete uma falha, o nosso julgamento não é pela falha, porque falhar é humano, mas é porque a gente é preto e pobre.


O preconceito social também é muito presente na vida dos atletas brasileiros porque a grande maioria é humilde e não tem dinheiro. Daí um dia você entra em um local que já tem um padrão, todo quadradinho, todo formadinho, e vão tentar mostrar que você não deveria estar lá. Eles vão começar a te oprimir.



É nessa hora que a gente fala de empoderamento, de persistência, de resistência e faz com que a coisa mude. Foi assim com Dona Aída dos Santos, única mulher negra nos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 1964. Foi assim comigo, com Rebeca, e é assim que eu faço com os meus alunos do projeto Brasileirinhos, em Paraisópolis, uma das maiores favelas de São Paulo.


É preciso deixar a porta aberta, lembra? E tem tanta gente boa para vir aí.. tem Lolô (Lorrane Oliveira) tem Thais (Thais Fidelis). Todos prontos para serem o que quiserem, onde quiserem.


As comunidades do Brasil estão cheias de Lewis Hamiltons, Serenas Willians, Rebecas Andrades. Eles só precisam de uma coisa: oportunidade.


Também faltam respeito e leis mais duras que punam o racismo. Afinal, não tem essa de pagar uma cesta básica por causa de uma injúria racial que fere, magoa, ou tentar justificar a entrada em uma vaga de cotista dizendo que até tem um tatatataravô negro na família. É crime, não pode, é direito nosso, que demoramos muito a conquistar. A gente queria equidade, mas enquanto não vem, tem que equiparar primeiro.


Mas tem avanços também... Tem mais gente falando sobre o tema, denunciando, mostrando. Setores do esporte estão mais abertos, assim como o mundo corporativo. É luta, é difícil, é dor, mas enquanto uma família for atingida por 80 tiros em uma periferia ou um homem for morto como George Floyd foi, é preciso resistir, falar, insistir. Doa a quem doer.


Isso toca na nossa ferida, mas não tem como curar sem tocar. Acho que estamos tocando para curar de vez. Para que a história das pessoas pretas no Brasil seja a verdadeira, para que as portas estejam sempre escancaradas, não se fechem nunca mais e as matérias não sejam mais para falar de dor, mas do amor e da grandiosidade que cada menino e menina preta desse país pode representar.”


Fonte: G1

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