O Parque do Povo costumava ser o local do encontro das pessoas com o São João de Campina Grande. Mas nele, há dois anos, só se respira saudade. Os cerca de 42 mil metros quadrados de área, que ficavam lotados de gente e alegria, hoje estão vazios. Falta a cor e o brilho de umas festas mais queridas pelos nordestinos.
Dançarinos de quadrilhas juninas na Pirâmide no Parque do Povo, em Campina Grande — Foto: Emanuel Tadeu/Divulgação
Por evitar um maior agravamento da pandemia de Covid-19, o evento não será realizado pelo segundo consecutivo.
Mas quem viveu, sabe. O festejo deixa lembranças felizes e genuínas de uma época em que o único compromisso possível era se divertir saboreando comidas típicas, dançando forró e se entregando à melodia única das vozes dos artistas do Nordeste.
Essa experiência singular era proporcionada por muitas mãos dedicadas e generosas: por meio da delicadeza da cozinheira que mexe a canjica no caldeirão, da força dos marceneiros que erguem os cenários e as barracas e de quem sobe no palco para emocionar e partilhar o melhor que tem em si.
Para eles, celebrar os santos juninos representa comida na mesa e segurança financeira não só para o mês de junho, mas muitas vezes para o ano inteiro.
O São João de Campina Grande é antônimo de pouco ou tímido. É imenso e expansivo. E se nele tudo é grande, a forma com que os profissionais que o fazem amargam a falta de trabalho também é. O bolso vazio é o reflexo de uma crise que passou a ser a realidade de muitos deles.
A estimativa da Secretaria Municipal de Desenvolvimento é de que cerca de R$ 300 milhões tenham deixado de circular na cidade por ano em que a festa não aconteceu.
Por isso, o G1 ouviu relatos de saudade, dificuldade e também da esperança alimentada por quem tanto se dedicou ao evento (veja os depoimentos abaixo).
Decoração do São João 2021 de Campina Grande, na Paraíba — Foto: Prefeitura de Campina Grande/Divulgação
‘Luz, câmera, ação’: o olhar de quem decora a festa e registra cada momento
Em 2021, apenas uma fogueira cenográfica é o que mantém acesa a chama das festas juninas em Campina Grande. Mas nem sempre foi assim. A decoração em excesso de dois anos atrás destoa do único símbolo que resistiu.
Quem ajudava a deixar a cidade em clima festivo era José Sereco, coordenador da decoração do local há décadas. Depois que tudo estivesse montado, ele era o responsável apontar o destino que cada bandeirola iria enfeitar. Memórias que ainda estão bem claras na recordação.
“Eu imagino sempre uma caixa de lápis. Eu tenho as mesmas cores que são o verde, vermelho, azul amarelo. É como se eu tivesse essa caixa de lápis e começasse a colorir Campina Grande. É uma emoção grande. Pra mim, fazer a maior festa da minha cidade é um orgulho danado de bom”, descreveu.
Do outro ficava Emanuel Tadeu, fotógrafo oficial da festa por pelo menos cinco anos, que capturava com sensibilidade cada detalhe do que São João representava para que o vivenciava.
As lentes das câmeras dele não registravam apenas o que era fato, mas o sentimento de se deixar contagiar pela energia junina.
“Me deparar com o preto e branco é muito estranho. A gente nunca esperava isso. A gente vive dessa festa e está tudo silenciado... a gente tá acostumado a ver o sorriso das pessoas”, lamentou Emanuel.
Mas ele reconhece que a interrupção foi necessária.
“Toda essa pausa que a gente deu por um motivo maior, de saúde. O São João não deixa de existir nunca, ele tá dentro da gente. Na hora certa ele vai voltar”, concluiu.
Comércio no Parque do Povo: lucro que seria dividido para o ano inteiro
No Parque do Povo era possível encontrar quase todos os ingredientes para compor uma festa completa: comidas típicas, bebidas inusitadas e artesanato. Tudo para todos os gostos.
O toque especial era dado pelos comerciantes, que trabalham com amor e animação para proporcionar experiências únicas para quem participa do evento.
Uma dessas figuras famosas é Franciilda dos Santos. Por esse nome, pode ser que ninguém se recorde. Na festa, ela é conhecida como “Fia do Bom que Dói”, bebida feita a base de cachaça, que é um verdadeiro fenômeno. O quiosque dela é parada obrigatória por lá.
Era no período junino que Fia conseguia colocar as contas em dia. Para ela, o São João era sinônimo de fartura. Agora é de de incerteza.
"Com o dinheiro que ganho no mês de São João, eu ajeito a minha casa, ajudo a minha filha com os estudos dela. E fico ainda regando [no sentido de economizar] pra o resto do ano todinho".
Há 23 anos, ela vende drinks no Parque do Povo. Conhecida pelo acolhimento caloroso e pela alegria, ela não escondeu a tristeza que sente em não poder trabalhar com o que ama.
"São João não é só trabalho, é diversão, é família. Não são clientes que eu ganho, são amigos que eu faço”, desabafou.
Sem quadrilhas, sem renda: costureiras têm prejuízo com não realização da festa
O clima junino pairava em Campina Grande muito antes até dos eventos no Parque do Povo. As festas aconteciam nos bairros, nas escolas nas empresas. Sem elas, as costureiras responsáveis pela confecção dos figurinos de quadrilha têm tido prejuízos altíssimos.
Jerusa Alves é uma das trabalhadoras afetadas Ela confeccionava e alugava vestidos de quadrilhas juninas. Segundo a costureira, a partir do mês de maio, as máquinas de costura davam espaço para a exibição dos vestidos que eram alugados.
“Todos os anos no mês de maio eu guardava minhas máquinas e virava locadora de vestidos. A demanda era boa, o rendimento era muito bom”.
Com a pandemia, as quadrilhas não podem acontecer, o que impactou de forma direta a vida da costureira.
“Já no ano passado ninguém alugou nada”.
Este ano, o cenário melhorou um pouco. Com a realização das festas juninas virtuais das escolas, a procura por roupas juninas começou a ser retomada, mas ainda de forma tímida, se comparada aos anos anteriores.
São João em casa, mas com comida típica: mesmo com a pandemia, procura por milho aumenta
Para o jovem vendedor de milho Artur Alves, os dias têm sido de muito trabalho. É que mesmo com a pandemia, a procura por milho foi alta neste mês de junho, indo além das expectativas dele.
A família trabalha com venda de espigas de milho há 35 anos. Só no ponto atual estão há mais de uma década.
“Eu achei que a procura seria realmente menos intensa por causa da pandemia e até dos protocolos de segurança”.
Falando em segurança, o comerciante demonstra bastante cuidado com os equipamentos de prevenção ao novo coronavírus: usa luvas, álcool 70, óculos e máscara, sempre.
“A gente tem que ter todo esse cuidado com o cliente e com a gente mesmo. Isso é o mais importante!”, disse.
Para atrair os clientes, Artur investe na simpatia, gentileza e preço atrativo.
“Aqui o cliente leva do jeito que ele quiser: escolhido, descascado, com palha ou sem palha, ele quem manda”, afirmou.
A expectativa é que a véspera e o dia de São João sejam de muitas vendas e com muita responsabilidade, comendo as delícias de milho em casa, sem aglomeração.
Setor hoteleiro e de restaurantes: a mudança de vida durante o desemprego
Em busca de oportunidades, Mailton Oliveira, de 34 anos, passou um ano e cinco meses morando em Campina Grande. Em abril de 2020, no início da pandemia, o restaurante em que ele trabalhava como garçom, que vivia o auge da expectativa pela super demanda de clientes, encerrou as atividades.
O estabelecimento fica localizado dentro de um complexo empresarial com um hotel. A mudança foi perceptível em todos os âmbitos.
“Os hóspedes começaram a cancelar todas as estadias e o fluxo de pessoas diminuiu. O restaurante [estava] sempre cheio e do nada [ficou] vazio e fechado”, recordou.
A mudança também foi notória para os empresários do setor hoteleiro, que chegava a ficar sem vagas no período junino.
“Os hotéis hoje continuam sobrevivendo com uma taxa de ocupação de 22%, 25%. Nós vivemos o sonho de se confirmar como um polo turístico e a pandemia veio jogar um balde de água fria justamente nesse momento que a cidade tinha uma super oferta de leitos e agora tem a redução do mercado consumidor”, explicou Divaildo Júnior, presidente do Sindicato Empresarial de Hospedagem e Alimentação de Campina Grande e Interior da Paraíba.
As restrições de público e não realização do evento resultaram também em um abalo imediato no setor de bares e restaurantes, que foi imediato, e refletiu não só nas atividades formais. Mas, principalmente no trabalho de ambulantes e prestadores de serviços, que desenvolviam funções indiretas relacionadas com a festa.
“A movimentação financeira de Campina Grande durante todo ano oscila entre R$ 140 e R$ 150 milhões por mês. No São João, ela praticamente dobra. A movimentação chega perto de R$ 300 milhões. É um número bastante significativo”, reforçou o presidente Divaildo.
No caso de Mailton, a rotina precisou ser completamente alterada. Ele até conseguiu um novo emprego como vendedor, em João Pessoa. Só que o agravamento da pandemia, fez com que ele voltasse para a casa dos pais, no município de São Vicente de Seridó, onde mora atualmente.
O impacto para Mailton não foi apenas financeiro. Mas, no dia a dia, ele tenta superá-los ao lado de quem ama e busca proteger.
“Tive que me mudar duas vezes, voltar para o zero mesmo. As várias formas de recomeçar e seguir sem olhar para traz. Psicologicamente falando, não é fácil, mas é possível se reerguer”, concluiu.
Saudade, o ‘remédio’, por enquanto, é esperar
Para muito além de uma festa que movimenta a economia local, o São João de Campina Grande é o berço da história de inúmeras famílias. Há pelo menos oito anos, as histórias de Moisés Buriti, vocalista e sanfoneiro do trio pé de serra Xiado de Xinelo, do seu pai Wilson Buriti e do seu tio William Buriti, se confundem com "O Maior São João do Mundo", com o evento de Campina Grande é conhecido.
“O nosso trio surgiu há uns 8 anos. Antes da formação nós já tocávamos outros estilos musicais, mas eu sempre tive um grande vontade de tocar sanfona, além da paixão que todos nós tínhamos pelo forró”, contou Moisés.
Logo após o início do grupo, o trio sanfoneiro já começou a fazer shows durante o São João e em outros períodos, mas, além de ser um momento de alegria em família, os shows eram uma forma de completar a renda familiar.
“Um ano após iniciar o aprendizado nós já começamos a tocar alguns eventos, mas era algo bem iniciante e principalmente por diversão. Era uma forma de estarmos juntos enquanto família, se divertir e também complementar a renda”, contou.
O grupo que fazia mais de 15 shows no mês de junho fez apenas um este ano. “O São João é uma festa que na sua essência precisa aglomerar, é uma festa de muito contato, e infelizmente com tudo isso que estamos passando as pessoas estão receosas em realizar qualquer evento”, afirmou.
Para Felipe Bratfisch, especialista em marketing de experiência e patrocínios de diversos eventos nacionais, a expectativa é que em 2022 o cenário mude completamente.
“A nossa perspectiva para 2022 é que o São João volte ainda mais forte. Em um período pós pandemia, a gente tem um momento de euforia, onde as pessoas que ficaram muito tempo em casa e ficam saudosas. A expectativa é que isso vai trazer ainda mais gente e ainda mais recursos para a cidade”, disse.
Para os integrantes do trio de forró Xiado de Xinelo, o “São João tá diferente, não do jeito que gostaríamos, mas da forma que podemos. Dias melhores virão” e hão de vir mesmo.
Este é o segundo mês de junho durante a pandemia da Covid-19. A situação não está confortável, afinal, inúmeras vidas ainda estão sendo perdidas. Por enquanto, o recomendado e sensato é esperar, para que, com o avanço da imunização e o controle da pandemia, 2022 seja de movimentação na economia, lucros, contato com pessoas amadas e, sobretudo, de oportunidade de voltar a viver e não só de sobreviver, como tem sido até aqui. Para que então, o São João esteja, enfim, diferente e melhor.
Fonte: G1
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