No chão de terra vermelha, uma fila de caixões à espera do enterro. A cada 2, 3 minutos, com a ajuda de máquinas, os sepultadores do cemitério Vila Formosa, o maior da América Latina, enterravam mais uma vítima da Covid-19 em São Paulo. O trabalho se alongava pela noite, e muitos dos sepultamentos ocorreram sob a luz dos postes de iluminação contratados emergencialmente para os enterros noturnos. Adenilson Costa, que há 25 anos trabalha no cemitério, chegou a ouvir que o sepultador já deveria “estar acostumado”. “Não, não estava acostumado com tanta gente morrendo e sendo sepultada num dia só”. No pico da pandemia na cidade, em maio, ele viu o número de enterros diários subir de 30 para cerca de 70.
“Ficamos muito chateados, tristes e psicologicamente abalados, que a gente não é de aço, né”, disse o sepultador, que agora, em outubro, vê sua rotina voltar a ser semelhante ao que era antes da pandemia de Covid-19.
O expediente extenuante de trabalho dos sepultadores era um reflexo das perdas para a pandemia nos hospitais de São Paulo. Em maio, o mês mais fatal da Covid na cidade, o número de enterros nos 22 cemitérios públicos da cidade cresceu 45%, na comparação da média dos 5 anos anteriores, segundo dados do Serviço Funerário, da Prefeitura de São Paulo, obtidos com exclusividade pelo G1.
O sepultador James Alan, de 33 anos e há oito no Vila Formosa, também não estava “acostumado” para o que estava para vir neste ano. “A gente viu sepultamentos de três pessoas da mesma família, quantas famílias não foram destruídas? Isso é muito triste para nós”.
De março a setembro de 2020, 13.942 moradores de São Paulo morreram por Covid-19, segundo a Secretaria Municipal de Saúde. No mês com mais vítimas, em maio, 3.484 pessoas perderam a vida para a doença. Nem todos que morrem ou residem em São Paulo são enterrados na capital paulista.
A maior pressão no sistema funerário municipal aconteceu de abril a junho. No Vila Formosa, na Zona Leste, o aumento de enterros em abril chegou a 89%, passando de 900 sepultamentos no ano passado para 1.705 neste ano. Em maio, foi de 86%. No mesmo mês, no cemitério São Luís, na Zona Sul, o salto foi de 109%.
No início da pandemia, a Prefeitura aumentou a capacidade de enterros e usou o cemitério Vila Formosa como um “centro de logística” para os mortos da Covid-19. Com a estabilização das mortes, os contratos feitos para este Plano de Contingência foram encerrados. Os postes de iluminação e os contêineres refrigeradores foram devolvidos em julho, e a contratação de 20 carros e 220 sepultadores extras foi encerrada em setembro.
No Vila Formosa, antes da pandemia, os sepultamentos ocorriam até as 18h. Mas foi preciso alongar o expediente, às vezes além das 20h, para dar conta do trabalho. “Tinha enterro que estava atrasado e estava aquele congestionamento, às vezes tinha fila de caixão no chão para a gente fazer sepultamento, foi bem desgastante”, contou Adenilson.
Somado ao cansaço, os sepultadores tinham ainda o medo de contrair o medo e levar para os familiares. Com isso, passaram a tomar um banho no cemitério, após o expediente, e outro ao chegar em casa, antes de abraçar esposa e filhos.
Apesar de o aumento no número de sepultamentos, São Paulo não precisou abrir valas comuns, cenário visto em outras capitais, como Manaus e até Nova York. Hoje, James Alan vê com orgulho o trabalho feito durante o pico da pandemia.
"Nosso nome vai fazer parte dessa história. Quando isso tudo passar, os filhos dos nossos filhos vão lembrar. ‘Oh, meu pai estava lá, ele participou disso”.
Os sepultadores acreditam que a profissão também passou a ser mais valorizada aos olhos da sociedade.
“É que nem os médicos, nós assumimos uma responsabilidade. Eles assumiram a responsabilidade de cuidar dessas vidas para que elas não cheguem aqui. E nós assumimos a responsabilidade de quando vir para cá, nós executarmos”, disse James.
Para epidemiologista, contar mortos é 'ato de compaixão'
Os cemitérios privados também tiveram aumento no número de enterros, mas menor que nos públicos. Em abril, o crescimento foi de 17%, em maio, de 33%, e em junho, 24%, comparando com a média dos cinco anos anteriores.
A pressão nos cemitérios públicos mostra como a doença se comportou na cidade. Um inquérito epidemiológico feito pela Prefeitura de São Paulo mostra que a doença é quatro vezes maior na classe D no que na classe A. “A epidemia jogou luz sobre a desigualdade na cidade”, disse o prefeito Bruno Covas.
O epidemiologista Paulo Lotufo, da Faculdade de Medicina da USP, estuda o aumento das mortes desde o início da pandemia. “Nas áreas mais pobres, que vão enterrar seus mortos nos cemitérios municipais, o aumento foi maior do que nas áreas mais ricas”.
Lotufo disse que contar os mortos em uma pandemia é um ato de compaixão. “Você não está trabalhando com números, está trabalhando com pessoas, com vidas, com vidas que foram, com parentes que ficaram”.
Para Lotufo, a capital paulista respondeu bem ao aumento da demanda no serviço funerário. “São Paulo é um caso único porque tem um serviço municipal, todos os outros lugares são as funerárias privadas que são muitas vezes problemáticas”.
Fonte: G1
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