A Igreja Genesis II de Saúde e Cura foi criada para "levar saúde para toda a humanidade". Ao menos, é o que afirmam os seus fundadores.
"Queremos criar um mundo sem doenças", dizia Jim Humble, em seu site pessoal. O homem, um idoso que já foi garimpeiro na América do Sul, é um dos fundadores da igreja.
As autoridades dos Estados Unidos, porém, têm uma visão muito diferente sobre a finalidade dessa "igreja", da qual Humble afirma ter deixado de fazer parte em 2017.
O outro fundador e atual líder, Mark Grenon, de 62 anos, recentemente foi preso na Colômbia junto com um de seus filhos, Joseph, de 32 anos, a pedido da Justiça dos EUA, que os acusa de fabricar, promover e vender um remédio fraudulento contra a Covid-19 e outras doenças.
Dois outros filhos do "arcebispo" Grenon, Jonathan e Jordan, também foram presos nos Estados Unidos e estão em prisão preventiva.
Segundo a acusação de promotores da Flórida, a família Grenon supostamente vendia dezenas de milhares de garrafas de uma "Solução Mineral Milagrosa", ou MMS (na sigla em inglês), como um remédio contra todos os tipos de doenças, incluindo malária e câncer, e até para o autismo.
O MMS é uma solução de cloreto de sódio e água destilada. A instrução é que ele seja misturado com um "ativador", por exemplo, ácido cítrico, para transformá-lo em dióxido de cloro. O produto é considerado tóxico para o consumo humano, segundo especialistas.
Tanto o cloreto de sódio quando o dióxido de cloro são ingredientes ativos de alguns desinfetantes, além de ter outros usos industriais, como na fabricação de papel.
Nenhuma autoridade de saúde reconhece qualquer possível efeito benéfico dessas substâncias para a saúde. A Food And Drug Administration (FDA), equivalente norte-americana à Anvisa, alertou que o MMS pode causar vômitos, diarreia ou reduzir a pressão arterial a níveis perigosos.
Em meio à crise de saúde causada pela pandemia do coronavírus, os Grenons teriam chegado a faturar US$ 120 mil (em torno de R$ 670 mil) por mês com as vendas de MMS, segundo documentos vistos pela BBC.
Os quatro Grenons são acusados de conspiração para cometer fraude nos Estados Unidos, violação da Lei Federal de Alimentos, Medicamentos e Cosméticos, e de não colaborar com investigações das autoridades.
Até o momento, eles são os únicos réus no caso. O Ministério Público se recusou a explicar se há outras investigações em andamento relacionadas ao MMS contra membros da igreja.
A BBC tentou ouvir a versão dos Grenons, mas eles não têm advogado até o momento. Uma pessoa, que disse ser familiar deles, não quis comentar o caso.
"Nossos direitos e liberdades simples estão sob ataque como nunca. Os custos legais estão aumentando e precisamos de sua ajuda", diz um site criado para apoiar os Grenons.
Vínculos latino-americanos
Mark Grenon (de azul, à esquerda) e seu filho Joseph após serem presos na Colômbia — Foto: Fiscalía de Colômbia via BBC
De acordo com a promotoria colombiana — que não quis se manifestar sobre o caso por ser uma apuração aberta nos Estados Unidos —, os Grenons "também venderam a 'poção' na Colômbia e, de Santa Marta, coordenaram os embarques para países africanos".
Em Santa Marta, na Colômbia — onde foram presos —, os Grenons também operavam um "centro de recuperação" focado no MMS, de acordo com os documentos que sustentaram o pedido de prisão.
As relações internacionais da Igreja Genesis II também incluem seguidores em outros países latino-americanos.
A sede foi, por um tempo, na República Dominicana, onde a igreja organizou seminários com inscrições que custavam U$ 1 mil (cerca de R$ 5,6 mil), sem incluir alimentação ou hospedagem.
A Genesis II tem mais de 200 ministros e dois bispos no Chile. Eyre Pacheco, uma integrante da igreja, disse à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, que alcançou o posto de ministra em 2013 e hoje é bispa "encarregada da filial 227 da Gênesis".
Os "médicos" e "ministros" do MMS são treinados em seminários de 10 dias. Cada estudante recebe um certificado em que obtém a permissão para abrir uma missão ou igreja local, explicou Humble, em publicação de 2011.
No "Livro para recuperar a saúde com o MMS", de publicação independente, Humble assegura que a igreja contava, em outubro de 2016, com mais de 1,7 mil ministros de saúde treinados em mais de 120 países.
Ainda em 2016, Humble — que se intitula o "descobridor" da Solução Mineral Milagrosa — foi localizado no México pela rede de televisão ABC.
Em seu site, ele afirma que se retirou da igreja — embora não do "ramo" do MMS — em 2017, para se concentrar nas pesquisas para escrever livros.
'Não era nada religioso'
"Fui treinada por Jim Humble em 2013 para usar o MMS. Queria aprender a usá-lo para ajudar meu sobrinho com câncer no cérebro", diz Eyre Pacheco à BBC News Mundo.
"Você vai entender que é uma experiência pessoal, que marca profundamente uma pessoa. Por isso, me comprometi com a causa de igreja e ajudei milhares de pessoas ao longo do caminho", disse.
A BBC News Mundo contatou pessoas de diferentes países que aparecem associadas à Genesis II, em reportagens ou em páginas de redes sociais. Um deles foi Julián Pérez, que aparece na internet como presidente de um centro de saúde naturista na Espanha, do qual disse estar aposentado.
Na página, é possível ver o certificado dele de "bispo" da Gênesis II, datado de 2013. Apesar disso, ele disse que nunca teve contato próximo com a congregação e que os líderes da igreja ignoraram os e-mails enviados por ele.
"Estava fazendo um estudo sobre a terapia eletrolítica (...) e me deparei, por acaso, com o resultado do que Jim Humble havia encontrado", relatou Pérez.
"Em algumas minas, os trabalhadores estavam morrendo e ele deu o produto (MMS) para purificar a água deles (...) e descobriu que poderia até curar a malária", disse Pérez à BBC.
Nem a Organização Mundial da Saúde (OMS) ou qualquer agência de medicamentos reconhece esse tipo de tratamento como capaz de curar qualquer doença.
Segundo Pérez — que disse ter feito sua tese de doutorado por uma universidade "alternativa" —, a Genesis II foi fundada "não com uma visão religiosa, com conhecimentos morais, mas para ensinar as pessoas a viver com saúde e dignidade".
Segundo os promotores dos Estados Unidos, os Grenons vendem MMS "sob o disfarce de Igreja de Saúde e Cura de Genesis II, uma entidade que eles supostamente criaram em uma tentativa de evitar a regulamentação do governo".
O próprio Grenon explicou o raciocínio em uma entrevista, em fevereiro deste ano, citada nos documentos oficiais.
"Eles não podem nos prender por fazer um de nossos sacramentos e eu sabia disso. Por isso, disse para criarmos uma igreja. Poderíamos ter feito um templo. Poderíamos ter feito uma sinagoga. Poderíamos ter feito uma mesquita", disse, na época.
"Então [a criação da Genesis] não foi realmente sobre religião? Foi para, de alguma forma, legalizar o uso do MMS?", questionou o entrevistador.
"Isso mesmo. Não foi por motivos religiosos, de jeito nenhum", respondeu o "arcebispo" da Gênesis II.
O coronavírus
A gravidade da crise do coronavírus trouxe à tona uma série de supostas soluções milagrosas, que não são confirmadas pela ciência, entre elas o MMS.
Catherine Hermsen, comissária assistente do Escritório de Investigações Criminais da FDA, afirmou que "a Igreja de Saúde e Cura Genesis II colocou os consumidores em risco ativa e deliberadamente."
"Continuamos protegendo a população de condutas criminosas que se aproveitam da pandemia de Covid-19", declarou Ariana Fajardo Orshan, advogada da Flórida.
Eyre Pacheco, porém, acredita na inocência dos Grenons e diz que "eles logo serão liberados". "Esta não é uma prisão por crime, porque ninguém foi ferido, mas por 'violar' uma regra imposta sem fundamento. É uma ofensa", declarou.
"O FDA não tem argumentos bem fundamentados para emitir os alertas sobre o MMS (...). Tudo o que eles falam sobre os efeitos colaterais do uso do MMS não tem fundamento", disse a mulher à BBC News Mundo.
As autoridades, no entanto, reforçam a ilegalidade das ações praticadas pela igreja. A batalha legal para conter as vendas do MMS na Genesis II não acontece apenas nos Estados Unidos.
No Peru, a Direção Geral de Medicamentos, Insumos e Drogas emitiu um alerta em novembro de 2019 contra os produtos que contêm dióxido de cloro ou cloreto de sódio, entre eles o MMS. A entidade pediu que esses produtos não devem ser consumidos, porque causam "graves danos à saúde",
Na Austrália, uma área do Ministério da Saúde local multou uma empresa que comercializava MMS em U$ 150 mil por anunciar ilegalmente a substância e abriu um procedimento para apurar possível publicidade ilegal.
"Acredito que se [o dióxido de cloro] for dissolvido, provavelmente o risco será baixo. Mas os consumidores tendem a pensar 'se um pouco é bom, mais deve ser ainda melhor'. E esse é o perigo", disse Keenneth Harvey, especialista australiano em saúde pública e estudioso sobre publicidade enganosa.
Há ainda um perigo maior, conhecido como dano indireto. "Se as pessoas pensam que é uma forma eficaz de tratar uma condição específica, elas podem ignorar outros tratamentos baseados em evidências científicas", assegurou Harvey.
De acordo com o especialista, a crise do coronavírus foi um "alerta" de que as autoridades "não podem deixar essas coisas passarem".
"O dano potencial não é tanto as consequências diretas à saúde. Mas as pessoas que o tomam podem pensar: eu sou imune, não precisamos de distanciamento social, nem de usar máscaras, porque estou protegido por esse produto mágico".
Fonte: BBC News
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