Fortaleza é a capital com a maior taxa de mortalidade por Covid-19 no Brasil. São 138,2 mortes para cada 100 mil habitantes – considerando todo o território nacional, esse índice é de 46,9, segundo o Ministério da Saúde. Dos 100 mil óbitos provocados pela doença no país, 3,7 mil foram registrados na cidade.
Vítima de Covid-19 é sepultada em cemitério de Fortaleza. — Foto: Camila Lima/SVM
Além disso, a taxa de letalidade em Fortaleza é de 8,6%, ou seja, de cada 100 pessoas que contraem a doença, 8,6 morrem. A taxa é mais que o dobro da brasileira, de 3,4%, conforme o Ministério da Saúde.
O pesquisador Antônio Lima Neto, gerente de epidemiologia da Secretaria Municipal da Saúde, atribui a alta mortalidade na capital cearense a dois fatores:
maior taxa de “ataque” da doença nos bairros periféricos, onde houve dificuldade no isolamento social;
problemas na aquisição de insumos hospitalares, principalmente ventiladores mecânicos, durante o pico de disseminação da doença.
"Tivemos a entrada de uma cepa do Sars-Cov-2 restrita ao Ceará, que tem a hipótese de ser mais agressiva", acrescenta o pesquisador.
Devido à doença, as aulas presenciais, funcionamento de bares e eventos como festas e shows seguem suspensos. A maior parte das atividades comerciais está liberada, desde que os responsáveis sigam um protocolo de segurança sanitária como o distanciamento social e fornecimento de álcool gel. O horário dos setores econômicos também está reduzido.
Na noite de 15 de março a Secretaria Estadual da Saúde (Sesa) comunicou os três primeiros casos positivos na cidade: dois homens e uma mulher que haviam viajado ao exterior estavam infectados. Quase cinco meses depois, a capital cearense acumula quase 43 mil casos, de acordo com a plataforma IntegraSUS.
A taxa de contágio da doença, no entanto, está desacelerando na cidade. Desde maio, o auge da pandemia em Fortaleza, a média móvel de óbitos caiu de mais de 90 mortes por dia para duas, em agosto.
Para a secretária da Saúde de Fortaleza, a médica Joana Maciel, a pior fase da pandemia na cidade passou, e o cenário atual da doença é de “baixa circulação viral”.
O alerta da secretária, no entanto, é de que a "pandemia não acabou", e a população precisa manter o distanciamento social.
Dos bairros com maior IDH à periferia
Doença chegou a Fortaleza primeiramente em bairros como Aldeota e Meireles e em seguida se espalhou pela periferia, onde o descumprimento do isolamento social foi mais comum — Foto: Helene Santos/ SVM
A doença atingiu inicialmente Aldeota e Meireles, os dois bairros de maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da capital cearense. Conforme pesquisadores, a doença chegou ao Ceará por meio de pessoas que viajaram para a Europa, onde tiveram contato com o vírus. A doença então se espalhou pelas demais regiões de Fortaleza e, em seguida, para cidades vizinhas.
15 de março: os primeiros casos de Covid-19 são confirmados em Fortaleza, em pessoas que viajaram para a Europa;
20 de março: Secretaria da Saúde anuncia que há transmissão comunitária do vírus, ou seja, os primeiros registros de contaminação dentro da própria cidade;
26 de março: José Maria Dutra, de 72 anos, residente de Fortaleza, foi o primeiro paciente a falecer com a Covid-19 no Ceará;
Fim de março: a pandemia alcança todos os 121 bairros de Fortaleza;
Início de abril: a doença se espalha pela orla e chega à Regional I de Fortaleza, de maior densidade da capital e onde habitam milhares de famílias socialmente vulneráveis;
Meados de abril: a doença flui em direção à Região Metropolitana;
Início de junho: todos os bairros de Fortaleza têm pelo menos um óbito pela doença.
O mais recente boletim epidemiológico da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), de 31 de julho, mostra que Fortaleza atingiu taxa de mortalidade de 142,3 para cada 100 mil habitantes, considerando uma população total de 2,64 milhões de pessoas.
'Epicentro inicial' da doença
“Fortaleza foi epicentro inicial junto com São Paulo e Rio de Janeiro. Tivemos o hub [no aeroporto de Fortaleza, que recebe voos de vários países europeus], com muitas entradas simultâneas, e eventos sociais com número de pessoas infectadas relevante, com grande circulação social”, lembra Antônio Lima Neto, gerente de epidemiologia.
Magda Almeida, secretária-executiva de Vigilância e Regulação da Secretaria da Saúde do Ceará, acrescenta que a competição internacional por equipamentos também impactou no acesso e na assistência, mesmo com os esforços em adquiri-los.
“Apesar de todo o planejamento, houve um atraso importante na chegada dos respiradores da China, e isso provavelmente contribuiu para mortalidade maior do que a gente esperava”, afirma.
No entanto, para Magda, a taxa alta também reflete uma política mais eficaz de vigilância em saúde. “Praticamente todos os óbitos têm sido analisados com exame de biologia molecular. Não temos muitos a esclarecer no Ceará, principalmente em Fortaleza”, frisa.
Isolamento e reabertura econômica
Para os especialistas, a adesão dos fortalezenses ao isolamento social decretado tanto pelo Governo do Estado quanto pela Prefeitura contribuiu para reduzir a velocidade de contaminação na cidade. Entre os dias 20 de março e 7 de maio, a medida foi renovada quatro vezes. Contudo, entre 8 e 31 de maio, passou a vigorar o isolamento social rígido, conhecido como “lockdown”, com a adoção de medidas mais restritivas de tráfego e circulação de pessoas.
De acordo com dados da empresa In Loco, que monitora a taxa de isolamento social em diversas cidades brasileiras, o dia 20 de março registrou 46% de isolamento em Fortaleza. Em 8 de maio, com o lockdown, chegou a 53%, variando entre 49% e 60% ao longo do mês.
No entanto, houve desobediência ao decreto, principalmente nos bairros periféricos. A Agência de Fiscalização de Fortaleza (Agefis) realizou 2.290 ações de monitoramento, dispersões de aglomerações, abordagens a estabelecimentos e ordenamento de filas entre 8 de maio a 2 de agosto. Do total, 90 são dispersões em feiras e 629 são estabelecimentos fechados por descumprimento das medidas do decreto.
A partir de 1º de junho, a capital entrou na fase de transição para a retomada das atividades econômicas e comportamentais. A partir daí, a taxa de isolamento passou a oscilar entre 40% e 50%, com pior registro em 19 de junho, com apenas 36%.
Atualmente, a cidade está na terceira semana da Fase 4, a última do plano, embora ainda haja restrições a alguns setores, como escolas e universidades, bares e cinemas. Na terça (4), o índice de isolamento estava em 39%, de acordo com a In Loco.
Na observação do epidemiologista Antônio Lima, atualmente há uma “transmissão residual em nichos esparsos” da cidade.
Diferentes cenários nos bairros
Ainda assim, a epidemia é vivenciada de diferentes formas conforme a territorialidade. A Regional I, que se destaca por ter a maior densidade populacional da cidade, também registra a maior taxa de mortalidade: 182 óbitos a cada 100 mil habitantes. Bem diferente da Regional VI, com índice de 109,9, o menor da capital cearense.
“A transmissão na Regional I foi muito mais relevante muito provavelmente pelo ataque inicial, quando ela se dispersou do epicentro na Aldeota e percorreu o lado do Vicente Pinzón e do Grande Pirambu [bairros com grande densidade populacional na periferia de Fortaleza], onde o isolamento é bem difícil”, pondera o pesquisador. Na área, o último estudo da prefeitura estima que, para cada caso confirmado, há outros 16 não detectados.
Em residências com mais de cinco habitantes, por exemplo, a taxa de infecção chegou a 18%. O primeiro levantamento de soroprevalência em Fortaleza, divulgado em junho, apontou que mais de 370 mil pessoas já desenvolveram proteção contra a Covid-19.
“Embora sejamos um dos Estados que mais testa, de toda forma, a gente deixou de capturar um número relevante de casos, que felizmente eram leves”, afirma Antônio Lima.
Famílias em luto
Hoje, Daysiane Correia ainda sente a ausência de Maria Mirian Farias, 71 anos. A avó foi internada em um leito de UTI do Hospital Fernandes Távora, mas veio a falecer em 6 de junho. Além da perda, os familiares precisaram lidar com uma troca de corpos da idosa com outra mulher de “traços semelhantes”. O filho de Maria do Carmo Eugênio confundiu Mirian com a própria mãe, segundo o Hospital.
Nesta quinta-feira (6), dois meses após a morte de Mirian, Daysiane reitera que não tem sido fácil lidar com o luto. “É uma coisa que a gente não quer aceitar, ainda estamos em processo de aceitação”, relata.
“Se eu morrer, cuide de tudo”, uma das últimas frases de João Batista da Silva, 68 anos, ainda ecoa na lembrança da filha, a supervisora de atendimento Charlene Izaquiel. Teimoso, recusando usar máscara, ele insistia em frequentar a calçada de casa, no Bairro Presidente Kennedy, mesmo com os alertas de perigo da doença. No fim de abril, ele passou a se cansar com facilidade. O quadro clínico foi piorando até ele ser entubado na UPA do Bairro Pirambu, em 27 de abril.
“Eu não tive esperança porque a gente sabe que, depois da entubação, só Deus”, admite Charlene. Seis dias depois, passando por dez paradas cardíacas, João Batista faleceu. O “buraco no peito” da filha, três meses depois, ainda dói. “A saudade é tão grande que só sabe quem passa. Nossa vida mudou muito de um dia para o outro. Todos os dias eu choro. Minha mãe está morando comigo porque a gente não consegue voltar à casa onde eles viviam”, conta.
Entre as personalidades vitimadas pela doença em Fortaleza, estão o músico Evaldo Gouveia, autor de sucessos como “Sentimental Demais” e “Somos Iguais”; o delegado Milton Castelo Filho, que foi diretor do Instituto de Polícia Técnica do Ceará; e o empresário João Gentil Júnior, idealizador do projeto Porto das Dunas, complexo turístico e hoteleiro de Aquiraz.
Pandemia desacelera, mas 'não acabou'
Segundo a secretária municipal de Saúde, Joana Maciel, a baixa circulação viral constatada pelo segundo estudo de soroprevalência (13% dos 3.300 investigados apresentaram anticorpos contra o vírus) é compatível com a atual situação epidemiológica de Fortaleza, com desaceleração de novos casos e menor demanda assistencial.
“Acompanhamos os números diariamente. Em maio, chegamos a atender 2.110 casos de síndrome gripal num único dia; ontem (4 de agosto foram 590. Nas últimas três semanas, tivemos uma média de 560 por dia. Para demanda de UTI, já chegou a 32 pacientes num só dia. Ontem, só um."
"Apesar dessa queda, a pandemia não acabou. As medidas de isolamento e uso de máscaras continuam tendo papel fundamental”, conclui a médica.
Fonte: G1
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