Márcia Guedes tinha 28 anos quando trouxe ao mundo seu primeiro filho, Roberto. Dias depois do nascimento, ela notou algo diferente no desenvolvimento dele. "Era uma criança que crescia, emagrecia e envelhecia rapidamente", disse. Com uma semana de vida, então, ela o levou a um pediatra, que suspeitou de uma doença rara, mas preferiu esperar mais tempo para avaliá-lo. E assim o fez quando ele completou um mês.
Roberto foi diagnosticado com a síndrome desde criança — Foto: Arquivo Pessoal
"Ele me disse que suspeitava ser a Síndrome de Berardinelli-Seip. Era algo que ele tinha estudado, mas nunca havia se deparado", contou Márcia. A suspeita se confirmou dias depois, quando ela viajou de Natal até Salvador para realizar os exames.
Roberto Wagner Guedes Fernandes, hoje com 33 anos, é um dos 38 casos atuais de Síndrome de Berardinelli no Rio Grande do Norte, segundo indicam os dados da Secretaria de Saúde Pública do RN (Sesap). Esse número representa 69% do total de casos no país, que, de acordo com o Instituto Vidas Raras, é de 55. A estimativa é de que, no mundo, existam cerca de 300 casos - a prevalência é de um caso para 10 milhões de pessoas.
Essa é a primeira de três reportagens da série Doenças raras no RN, produzida pelo G1. Os conteúdos serão publicados entre este sábado (29), Dia Mundial das Doenças Raras, e a segunda-feira (2).
O município que mais reúne pacientes é Carnaúba dos Dantas, cidade no Seridó potiguar com cerca de 7,5 mil habitantes. "Em Carnaúba dos Dantas, a incidência desse indivíduo é uma para 180 pessoas", disse o médico geneticista João Neri, do Centro de Reabilitação Infantil do RN (CRI) .
João Neri é o único médico geneticista do RN — Foto: Kallianny Bezerra
A Síndrome de Berardinelli, também conhecida como Lipodistrofia Generalizada Congênita, é uma doença genética rara que se caracteriza pela ausência de tecido adiposo - não há armazenamento normal de gordura no corpo. A gordura fica concentrada em outros locais, como fígado e músculos.
Uma das explicações para a grande incidência da doença no estado está relacionado à consanguinidade. "Nosso estado tem uma prevalência de consanguinidade reconhecida em alguns municípios que chega a 33%. Um em cada três casamentos são de pessoas que sabem que são parentes", explicou João Neri.
"Se for ver de fato o grau de parentesco da população deve ser muito maior, porque é um estado pequeno, são municípios pequenos, então vai ter isso em grande escala".
E a consanguinidade tem relação com as posições geográficas das regiões. "Nossa migração populacional veio de Pernambuco e da Paraíba, da costa pro interior, no final do século 18 para o 19. Quem migrou para o Seridó e para o Alto Oeste tinha mais dificuldade (de movimento e comunicação), então acabou tendo uma alto índice de consanguinidade nessa região", explanou a pesquisadora Selma Jerônimo, diretora do Instituto de Medicina Tropical da UFRN.
Sofrimento e preconceito
Portador da Síndrome de Berardinelli-Seip, Roberto hoje trabalha como administrador, é casado e tenta viver - em meio a algumas restrições - uma vida normal. Por se tratar de uma doença genética e incurável, ele segue em tratamento, com consultas mensais ao médico e uma ininterrupta dieta, que proíbe o consumo de sal, açúcar e gorduras. Além disso, ele faz o uso de um remédio chamado de leptina.
Roberto sofreu com preconceitos na infância — Foto: Arquivo pessoal
Mas nem sempre foi assim. Quando criança, na década de 1980, alguns médicos chegaram a crer que ele não sobreviveria muito tempo. "O diagnóstico que deram era de que viveria até os seis meses. Depois foi dois anos, depois seis anos... Quando ele completou nove, eu disse no hospital que não queria mais saber quanto tempo de vida ele teria, porque era um sofrimento", lembrou a mãe.
E o sofrimento também acontecia em função do preconceito que Roberto sofria quando era criança por conta do inchaço na barriga e do aparente envelhecimento. Um desses casos aconteceu com um mês de vida. "Fui num supermercado e começou a parar gente. Veio uma senhora e me perguntou o que era 'aquilo' no carrinho. Eu disse que era meu filho e ela foi chamar uma amiga para ver o 'menino macaco'. Eu me descompensei, dei um sopapo nela, mas entrei em choque", recordou Márcia.
A partir desse episódio, foram 17 dias sem que ela conseguisse encostar no filho devido ao trauma. "A psicóloga acha que meu subconsciente achava que se eu olhasse para ele eu ia ver aquele macaco que a mulher tinha dito", explicou. Na escola, a discriminação também acontecia. "Os amiguinhos não viam nada, mas os pais, sim".
Roberto e Márcia atualmente — Foto: Arquivo pessoal
Complicações
A síndrome pode acarretar problemas no fígado, nos rins e nos ossos. Além disso, a diabetes apresentada na doença pode afetar a visão. "Meu filho passou nove meses em cima de uma cama com tumores ósseos no fêmur. Ele entrou e eu estava sabendo que ele podia ter saído sem a perna", lembrou Márcia.
Roberto quando criança: ele teve complicações, mas o remédio auxiliou a estabilizar a saúde atualmente — Foto: Arquivo pessoal
Quando criança, ela lembra que os problemas se potencializavam. Nos dias atuais, desde o uso da leptina, a situação é mais controlada. "Se não fosse o remédio, ele estaria cego, por causa da retinopatia. Ele passou um ano tendo derrames imensos na visão".
Descobrindo novos casos
Durante os primeiros anos da vida de Roberto, os médicos pediam à mãe dele que evitasse sair de casa, já que não se sabia muito sobre a doença. Lá pelos 5 anos de vida do filho, Márcia decidiu descumprir essa regra.
"Começamos a sair e descobrir que tinha bem mais gente com a síndrome. Isso porque eles têm as mesmas características, a mesma carinha, o mesmo jeito, o andar. E ele era confundido com outras crianças", contou. Anos antes, ela havia recebido a informação de outra criança com a síndrome em Currais Novos.
Márcia passou a buscar novos casos para ajudar — Foto: Arquivo pessoal
A semelhança era tanta que ela passou a buscar em outras cidades crianças com a doença usando uma foto do filho. "Eu levava a foto do meu filho e perguntava se a pessoa conhecia, nas rodoviárias ou nos postos de saúde. E as pessoas diziam que conheciam e me davam o nome", falou.
Dando suporte
Com novos casos, Márcia Guedes decidiu fundar a Associação dos Pais e Pessoas com a Síndrome de Berardinelli do Estado do Rio Grande do Norte (ASPOSBERN) em 1998. Hoje, a associação conta com 38 pessoas diagnosticadas com a síndrome no estado - uma jovem morreu neste mês - e é a única no mundo relacionada à doença, chegando a receber até portadores de outros países.
"Nosso trabalho é conscientizar as famílias, principalmente na alimentação, que é fundamental. Eles têm uma fome cavalar, a própria criança recém-nascida. É preciso fazer a reeducação alimentar", explicou Márcia.
Roberto e Márcia atualmente: os dois coordenam associação para ajudar novas pessoas com a síndrome — Foto: Arquivo pessoal
Ela também se formou em enfermagem para poder auxiliar o filho e ajudar outras crianças e pais com algumas noções básicas. Antes, tinha um emprego seguro como secretária, mas abdicou da profissão para se dedicar ao tratamento do filho.
Para Márcia, pela própria experiência, outro suporte fundamental é o psicológico. "Muitas mães entram em depressão. Eu sofria quando o médico me dizia que não sabia cuidar dele, não sabiam o que fazer".
Desconhecimento
Márcia Guedes diz que até hoje alguns médicos desconhecem a Síndrome de Berardinelli, fato que também é apontado pelo médico geneticista - o único no RN - João Neri. Por isso, ele acredita que uma das medidas mais necessárias atualmente é disseminar esse conteúdo - e não só para os profissionais de saúde.
"A gente está tentando ver se mobiliza a população para se reconhecer. E para cobrar de quem for possível apoio não só nesse conhecimento do quadro, no tratamento, mas na divulgação dessas condições, para que as pessoas entendam como aquilo acontece", disse.
"O importante agora é que as doenças passam a ser reconhecidas. Algumas têm tratamento e outras não têm. Então, tem que ter o manejo para manter as pessoas as mais saudáveis possível", reforçou a pesquisadora Selma Jerônimo, da UFRN.
Selma Jerônimo, médica pesquisadora da UFRN e diretora do Instituto de Medicina Tropical — Foto: Cícero Oliveira/UFRN
Segundo Neri, 5% das pessoas que nascem têm doença genética. "No RN, que nascem 6 mil por ano, dá em torno de 300 crianças com doenças genéticas. É muito. Ela nasce, não sabe o que tem, roda, algumas morrem, e vão chegar pra gente os que conseguem sobreviver. E mesmo assim com assistência inadequada", destacou.
Neri acredita que há uma falha na aplicação de conteúdos genéticos nas universidades. Ele cita que, apesar disso, é preciso que os profissionais de saúde entendam os contextos das regiões que atuam. "O profissional tem que ter noção de que isso pode existir, porque na região é comum. Tudo bem que eu não saiba todas as doenças genéticas raras da minha região. Mas, se é comum, eu tenho que saber disso", falou.
"Se eu souber, eu vou conseguir diagnóstico precoce, consequentemente minimizar custos, melhorar a qualidade de vida da população e conseguir orientar para que se evite recorrência".
Para Selma Jerônimo, tão importante quanto o diagnóstico é o manejo da doença. "É fundamental a interação dos profissionais de saúde e, acima de tudo, do apoio da família, que é um papel importante. A família é quem sofre, não só o paciente. A gente precisa de capacidade laboratorial, segmento clínico, especialistas e profissionais de saúde que entendam a variabilidade das doenças e como conduzi-las".
fonte: G1
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