Profissionais de medicina do Conjunto Hospitalar de Sorocaba (CHS), unidade responsável por atender 48 cidades da região, têm recebido salário mesmo sem atender pacientes. Eles participam do esquema conhecido como "farra do ponto", em que registram a entrada, deixam o hospital e só voltam no fim do expediente, para marcar a saída. O esquema foi denunciado pelo Fantástico neste domingo (7).
A reportagem da TV TEM e do G1 flagrou dois médicos e um cirurgião dentista que fazem da prática uma rotina. Eles chegam, batem o ponto e saem do hospital. O destino varia: eles vão para casa, à padaria, à academia, fazem compras e até atendem em clínica particular. Enquanto isso, pacientes esperam atendimento pelo profissional que sequer está na unidade hospitalar, apesar de ganhar para isso.
Esta não é a primeira vez que a "farra do ponto" é denunciada no Fantástico. Em 2011 foi descoberto um esquema em que médicos se ausentavam durante o horário de plantão. Para coibir a prática, o Hospital Regional instalou equipamentos de ponto eletrônico, mas a fraude persiste, como mostra a reportagem.
Médicos batem o ponto e saem da unidade (Foto: Reprodução/TV Globo)
Flagrantes
No dia 20 de novembro, às 7h05, o médico anestesista Francisco Manoel dos Santos Mendes chega ao CHS, bate o ponto e vai até uma lanchonete na mesma rua. No estabelecimento, ele conversa com um amigo, compra um lanche e volta para o hospital.
De acordo com o registro, próximo das 10h o médico sai novamente, só que de carro, ainda no horário de plantão. Em outro flagrante, em 7 de dezembro, Mendes chega às 7h10 e registra a digital. Menos de três horas depois vai até uma academia. As imagens mostram ele em uma esteira.
Em seguida, às 12h14, o anestesista volta ao hospital. No fim do dia, com outra roupa, ele espera o horário para bater o ponto mesmo sem ter cumprido todo o plantão de 12 horas. O Portal da Transparência informa que o salário do médico é de R$ 20.927,29 por mês referentes a uma jornada de 20 horas semanais.
Procurado por telefone, o médico disse à reportagem que “não tinha nada para falar”.
'Fico a distância'
Elias Agostinho Neto, cirurgião dentista, foi flagrado realizando uma cirurgia em um hospital particular na cidade às 15h de 24 de novembro, dia e horário em que deveria estar de plantão no CHS. Ele é flagrado quando sai do centro cirúrgico para receber da enfermeira uma caixa de bombons enviado pela reportagem.
No mesmo dia que Elias deveria estar no CHS, a paciente Lúcia Elena Zorzetto diz que caiu em casa e precisava ser atendida pelo especialista.
“Eles [funcionários] não falaram o porquê [da ausência]. Deram soro, pingou devagarinho, mas não sei quem mandou eu tomar soro, não veio médico me ver”, lembra a aposentada.
Segundo a escala daquele dia, Elias tinha que trabalhar das 7h até as 19h. No entanto, só retornou ao hospital para marcar o registro de saída, mesmo sem ter cumprido a jornada de trabalho.
Os flagrantes da "farra do ponto" se repetem. Em 29 de novembro o cirurgião registra o ponto e segue para o centro de Sorocaba. No dia 1º de dezembro ele chega, bate o ponto e para em uma padaria antes de ir para o consultório particular na região central, às 9h30. De acordo com o Portal da Transparência, ele recebe R$ 4.471,85 para cumprir a jornada de 20 horas semanais.
Por meio da câmera escondida, um funcionário confirma que a prática é comum e, mais do que isso, planejada.
“É para ter dois médicos de escala, fica um só, daí um faz a primeira hora e o outro faz a segunda. Com certeza é feito um acordo entre eles”, afirma.
O dentista foi surpreendido pela equipe de reportagem no consultório e destacou que cumpre os horários estabelecidos. “Fico lá, fico a distância um pouco, fico em casa, volto, mas estou sempre lá. Estou priorizando a dor do paciente”, afirma.
Em nota, o Conselho Regional de Odontologia de São Paulo informou que casos como o descrito podem ser considerados infração ética. A pena varia de advertência até cassação do exercício da profissão.
'Dá uma olhada e vai embora'
A reportagem da TV TEM e do G1 ainda flagrou outro médico que também participa da "farra do ponto". Em 14 de dezembro, às 7h, o cirurgião plástico Newton Canicoba é flagrado estacionando o carro em uma vaga de táxi antes de bater o ponto e voltar para a casa onde mora, em um condomínio na Zona Sul de Sorocaba (SP).
O médico volta horas depois ao CHS, mas por pouco tempo. Segundo o registro da produção, ele vai para uma clínica particular, onde fica até as 12h e volta para a unidade para bater o ponto. Sem saber que estava sendo gravada, uma funcionária conta a rotina do médico. “Ele vem, dá uma olhada, vê se tem algum caso para resolver e vai embora.”
Conforme o Portal da Transparência, Canicoba recebe R$ 7.918,97 para cumprir uma jornada de 20 horas semanais.
A situação se repete no dia 21 de dezembro. O médico chega, fica cerca de meia hora no ambulatório e vai embora. Segundo a escala, ele tinha pacientes desde as 7h.
No último dia de flagrante, em 4 de janeiro, o médico registra a digital, deixa o CHS de moto e vai para casa. Horas depois volta para o hospital, sai novamente e vai até uma loja de ferramentas. Canicoba retorna às 12h10 para encerrar o expediente. Neste momento ele é abordado pela reportagem, mas se recusa a falar sobre o assunto.
Cerca de 30 minutos depois, o médico sai da unidade e fala sobre o flagrante. Ele alega que saiu para comprar o controle de um ar condicionado - e nega ter voltado para casa.
“Eu voltei para cá logo em seguida. Tinha esquecido meu carimbo e minha caneta, e sem o carimbo e sem a caneta eu não consigo trabalhar. Como tinha pouco paciente, aproveitei para ir comprar um controle de ar condicionado, porque o nosso estava quebrado, aí fui comprar porque o estado não fornece. Foram três dias isolados, um eu abonei, o outro provavelmente foi o de hoje, que eu fui pegar o aparelho porque não tinha paciente para atender”, defende-se.
Hospital de Sorocaba utiliza o ponto eletrônico (Foto: Reprodução/TV Globo)
Punição
Lavínio Nilton Camarim, presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), afirma que, se comprovada infração por abandono de plantão, o médico pode ser punido.
“O Conselho Regional de Medicina é muito claro nisso. Ele é taxativo em orientar seus médicos para que, em regime de plantão, jamais abandone a não ser em situações especiais. Se realmente tiver infração médica, o médico poderá receber desde uma advertência até mesmo a suspensão ou cassação do exercício profissional.”
O secretário-adjunto da Secretaria de Saúde de São Paulo, Eduardo Ribeiro Adriano, diz que as atitudes são de exceção "e, como tal, devem ser punidas exemplarmente". Se houver a confirmação, os profissionais deverão ser demitidos.
“Mais do que isso, eles vão ter que devolver todo o recurso que receberam e foi objeto de não contrapartida de trabalho.”
Fonte: G1
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