O portal de alvenaria manchado pelo tempo já mostra o que o visitante vai encontrar ao cruzá-lo: mato alto, pedaços de construção, ruínas de aproximadamente 10 túmulos e um silêncio que só é quebrado pelo canto dos pássaros. Esta é a condição do primeiro cemitério protestante do Brasil, local que serviu de repouso derradeiro a estrangeiros, predominantemente suecos e ingleses, no início do século XIX.
Por conta dos 500 anos da Reforma Protestante, comemorados na terça-feira (31), o G1 visitou o cemitério localizado no meio da Mata Atlântica, em Iperó, a 130 quilômetros da capital.
O espaço, praticamente esquecido na história, poderia passar despercebido por aqueles que visitam a Floresta Nacional de Ipanema, não fossem duas placas cravadas na terra, uma em cada lado da área.
Elas indicam que ali, entre o Morro Araçoiaba e o Rio Ipanema, foram sepultadas pessoas que não seguiam o catolicismo, religião dominante no país em 1811 - quando o espaço foi construído.
Protestantes não tinham autorização para serem enterrados em cemitérios convencionais (Foto: Mayara Corrêa/G1)
Os protestantes, considerados hereges na época, não tinham autorização para serem enterrados em cemitérios convencionais, a fim de não passarem a eternidade perto daqueles que seguiam a Igreja Católica Apostólica Romana, como explica o jornalista e historiador Sérgio Coelho.
“Se hoje ainda existe uma certa intolerância religiosa, imagine há mais de 200 anos, quando as igrejas protestantes, anglicanas e presbiterianas estavam nascendo? Eles [protestantes] chegam em um país onde a igreja e o estado formam um único poder, todo mundo era católico, eles em 20 pessoas, de repente um morre. As cidades não enterram?”, explica o historiador.
Jonas Bergmann, um carpinteiro sueco, morreu de tuberculose e foi a primeira pessoa sepultada no campo, em um espaço atualmente cercado por árvores e espécies vistas normalmente em cemitérios, como cedros e ciprestes.
Pela falta de informações no cemitério, resultado do tempo e de furtos que deixaram a área quase sem as características originais, não é possível precisar o ponto do jazigo de Jonas.
No entanto, de acordo com uma das placas, os restos mortais dos estrangeiros foram transladados para seus países de origem no início do século XX.
Cemitério conta com cruzes de ferro provavelmente fundidas na Real Fábrica de Ferro de Ipanema (Foto: Mayara Corrêa/G1)
Nas duas únicas lápides com nomes visíveis há registros do enterro de Ottilie Hund Neumann, em 1866, e de Russini Ed. Adelaide, em 1881, cujo primeiro nome desapareceu com parte da pedra que levava a inscrição.
Coelho afirma que não há registros sobre quantas pessoas foram enterradas no cemitério, mas acredita que o grupo de protestantes na região não era grande.
“A não ser que posteriormente vieram outras levas de alemães, por exemplo. Se só podiam vir luteranos para cá [cemitério], é outra história, que é muito interessante, polemizada, e precisava ser melhor investigada para saber se existia uma capela aqui ou não, se aceitavam o sepultamento de católicos, pois o inverso não acontecia”, frisa.
Para historiador, cemitério é exemplo de tolerância religiosa (Foto: Mayara Corrêa/G1)
Após a morte de Jonas Bergmann, o então diretor da Real Fábrica de Ipanema, Carl Gustav Hedberg, transmitiu ao príncipe regente, Dom João VI, a dificuldade de encontrar um local para o sepultamento do sueco.
Enviada ao Marques de Alegrete, capitão general da capitania de São Paulo, a Carta Regia datada de 28 de agosto de 1811, e assinada pelo monarca, determinou a escolha de uma área para abrigar os restos mortais dos protestantes.
“Também vos encarrego a cuidar e que aí se estabeleça, e conserve em boa ordem um terreno, que sirva de cemitério aos ingleses e suecos, e em geral aos que não forem membros da Nossa Santa Religião, permitindo-lhes também que em suas casas particulares, e sem forma de igreja, possam reunir-se para o culto particular, que dirigem ao Ente Supremo, e no qual vigiareis, não possam jamais serem inquietados pelos habitantes do país, o que muito vos é recomendado. ”
Além de deixar claro que os protestantes teriam um local para o sepultamento, na mesma carta o monarca pede que o trabalho do grupo seja enaltecido, e afirma que o episódio da morte do carpinteiro causou um “horror” na população, que os via como hereges.
Primeiro cemitério protestante do Brasil está quase esquecido (Foto: Mayara Corrêa/G1)
Tolerância
Para o historiador de Sorocaba, o ato de Dom João VI foi histórico e generoso por ser um monarca católico, que poderia “desprezar os estrangeiros” mas, no entanto, criou um ambiente de amizade e ainda determinou que a população respeitasse a crença do grupo.
Coelho destaca ainda que a relevância história do local deveria ser levada em conta para a preservação da memória de luta dos protestantes.
“Acho que devemos continuar a reforma e passar aqui por esse local, que não é apenas a história da fazenda Ipanema, nem a história dos suecos que viveram, é um marco da convivência pacífica que foi se construindo ao longo do tempo, em torno de cristãos, católicos e não católicos. A cidade poderia continuar a frente nessa história, preservando o espaço que é, para mim, um monumento a tolerância religiosa”, conclui.
Lápide de pedra leva inscrição em italiano no cemitério protestante em Iperó (Foto: Mayara Corrêa/G1)
Fonte: G1
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