A prisão de três dias, punição imposta a um soldado do Corpo de Bombeiros Militar do Rio Grande do Norte que usou um grupo de WhatsApp para convocar associados para uma reunião, trouxe à tona uma questão controversa no meio militar: a prisão administrativa – castigo disciplinar comumente aplicado em caso de transgressão do regimento interno das corporações. A OAB-RN defende a reforma do regulamento e alerta: o Estado, enquanto mantiver a prisão disciplinar, estará ferindo acordos internacionais de direitos humanos.
Conselheiro e presidente da Comissão de Segurança Pública e vice-presidente da Comissão de Direito Militar da OAB-RN, o advogado Bruno Costa Saldanha ressalta que tratados internacionais de direitos humanos firmados pelo Brasil são contrários a este tipo de penalidade. “Nossa missão institucional não é apenas a de defender os interesses da classe dos advogados, mas, também e principalmente, a da defesa intransigente da Constituição Federal, notadamente quanto aos direitos humanos. A prisão disciplinar vem sendo objeto de debate em várias comissões da OAB, nas quais concluímos que é ilegal este tipo de penalidade prevista no Regulamento Disciplinar da Polícia Militar do RN e que também é aplicável aos bombeiros”, enfatiza.
O advogado vai além. Saldanha explica que a OAB é contra a prisão administrativa de policiais e bombeiros militares por entender ser incompatível com o ordenamento jurídico. “Existem outras formas para garantir a hierarquia e a disciplina que não o cerceamento da liberdade do profissional de segurança pública. Não é a concepção mais moderna, especialmente pelo fato de quem muitas destas prisões disciplinares decorrem de outras violações constitucionais, como o cerceamento da liberdade de expressão, liberdade de pensamento, de associação e até mesmo liberdade acadêmica”, acrescenta.
Ainda de acordo com o representante da OAB, o RN precisa seguir o exemplo de outros estados que aboliram as prisões administrativas e/ou reformularam seus regulamentos disciplinares. “É o caso de Minas Gerais, que desde 2002 transformou o regimento das corporações em Código de Ética. Já na vizinha Paraíba, o governador Ricardo Coutinho, desde o ano passado, baixou decreto afastando a execução da pena de prisão disciplinar para militares estaduais. Ele compreendeu que a execução destas penas pode gerar prejuízos ao Estado brasileiro perante organismos internacionais e acordos sobre direitos humanos firmados pelo Brasil que têm status de norma constitucional desde 2004”.
'Regulamento arcaico'
No RN, a polêmica gira mesmo em torno do Regulamento Disciplinar da PM, que desde a época da ditadura norteia a conduta dos policiais e bombeiros militares do estado. O documento, datado de 12 de fevereiro de 1982, é considerado ultrapassado. "Estamos falando de um regulamento disciplinar arcaico e que dá margem para perseguições", declarou o cabo Roberto Campos, presidente da Associação dos Cabos e Soldados da PM no Rio Grande do Norte.
Segundo o policial, o governador Robinson Faria disse durante sua campanha eleitoral que daria fim às prisões administrativas, mas a promessa ainda não foi cumprida. "O governador da Paraíba acabou com isso através de decreto. O RN também precisa sair do discurso. O nosso regulamento, do jeito que está, suprime a liberdade de expressão e não permite que a sociedade tome conhecimento dos abusos que ocorrem dentro dos quartéis”, reforçou Campos.
Medidas judiciais
“O governo do Estado, no início desta gestão, criou uma comissão para discutir a modernização da legislação dos policiais e bombeiros. A OAB até foi convidada a participar, mas depois deixou de ser chamada para as reuniões. É ponto pacífico entre os envolvidos nos debates que a prisão disciplinar deve deixar de existir pelos motivos que já mencionei, portanto, é questão de tempo para que ela seja extirpada da vida dos profissionais da segurança pública que se organizam militarmente”, disse Bruno Saldanha.
O advogado informou ainda que a OAB abriu diálogos com os comandantes da PM e do CBM, assim como também com representantes da Secretaria de Segurança e Gabinete Civil, e que, caso o estado não acabe com as prisões disciplinares, não descarta ter que acionar o Estado na Justiça. "Já enviamos nosso parecer para que o governo decrete, pelo menos até a edição do Código de Ética, a vedação do cumprimento de qualquer pena de cerceamento de liberdade pelos militares estaduais. Esperamos que nos próximos dias isso seja efetivado. Caso contrário, teremos que estudar outras medidas, não descartando-se as judiciais, embora achemos que isso não será necessário dada a disposição do governo em negociar esta saída", afirmou.
O G1 pediu ao Gabinete Civil do governo do estado um posicionamento sobre as prisões disciplinares, mas até o momento da publicação desta matéria não havia recebido uma resposta. A mesma solicitação foi feita à Polícia Militar, mas também não se manifestou
Outros casos
A detenção do soldado do Corpo de Bombeiros não é um caso isolado. A OAB-RN revelou que, somente na PM, mais de 180 processos disciplinares foram abertos para tratar de manifestação de pensamento que findaram com penas de prisão.
Em setembro do ano passado, por exemplo, o G1 noticiou o caso do policial militar João Maria Figueiredo da Silva, que é lotado na cidade de Touros, no litoral Norte potiguar. Em uma página no Facebook, ele fez críticas ao modelo de polícia utilizado no país. “Esse estado policialesco não serve nem ao povo e muito menos aos policiais que também compõe uma parcela significativa de vítimas do atual contrato social brasileiro. Temos uma Polícia que se assemelha a jagunços, reflexo de uma sociedade hipócrita, imbecil e desonesta!!” (SIC), comentou Figueiredo. Resultado: o comando da PM mandou puni-lo com 15 dias de prisão. Um habeas corpus expedido pelo juiz substituto Ricardo Tinoco de Góes impediu o cumprimento da ordem. Com a ordem de detenção suspensa, o PM segue trabalhando normalmente.
Comentário feito pelo soldado João Maria Figueiredo foi considerado uma ofensa à Polícia Militar (Foto: Reprodução/Facebook)
Também no ano passado, em dezembro, um outro fato ganhou destaque. Foi o caso do capitão da PM Nilson Araújo foi processado por ter feito uso ‘inadequado’ de uma rede social. No dia 22 de novembro, o comando da PM publicou em Boletim Geral uma orientação para os que fazem e representam a corporação, "para os cuidados a serem tomados na utilização de redes sociais”. Três dias depois, o capitão escreveu: “Orientações sobre utilização de redes sociais é meus ovoss” (SIC).
Capitão Nilson Araújo usou o Facebook para criticar a orientação da PM sobre o uso de redes sociais (Foto: Reprodução/Facebook)
Fonte: G1
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