Esquálido, mas de pé, Fernando Ricksen, se olha no espelho. No corpo de 40 anos coberto por tatuagens, uma se destaca. Escrita
no peito, está a frase em inglês: "Eu sou um guerreiro. Um guerreiro com espírito de luta. Nunca vou desistir e nunca vou me render". Foi feita no tempo em que era ídolo do Glasgow Rangers, da Escócia, e convocado para a lateral da seleção da Holanda. É de época em que não lutava todos os dias contra uma sentença de morte.
"Fernando perdeu muito peso. Quase não anda mais e está com muita dificuldade de fala. Eu mesmo não consigo mais conversar com ele pelo telefone porque não entendo o que diz. Mas ele luta sem parar", afirma ao LANCE! o jornalista holandês Vincent de Vries, biógrafo e amigo de Ricksen.
Quando o entrevistava para escrever a biografia do jogador, de Vries notou que a voz do lateral estava diferente. Mais pesada e arrastada, como se estivesse bêbado. Meses depois, ele foi diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica. A doença degenerativa afeta os músculos aos poucos e não tem cura. Começa pela dificuldade para andar, engolir e, por fim, para respirar. Tornou-se conhecida do grande público em 2014 com a campanha "Ice Bucket Challenge" (desafio do balde gelado), em que celebridades jogavam água nas próprias cabeças para alertar sobre o problema.
Ricksen estará em Madri nesta terça-feira. É convidado de Cristiano Ronaldo para ver a partida do Real contra o Legia Varsóvia, no Santiago Bernabéu, pela Liga dos Campeões da Europa. "Eles se enfrentaram quando Fernando estava no Rangers e Ronaldo era do Manchetster United. Encontraram-se novamente na última premiação da Bola de Ouro. Foi quando surgiu a ideia de ir a Madri", completa de Vries.
Morador de Valencia, na Espanha, Ricksen foi barrado em voo da KLM para Glasgow no mês passado. Seria homenageado pelo antigo inimigo Celtic. A argumentação da companhia foi que, em caso de emergência, o passageiro não conseguiria desafivelar o cinto de segurança. Foi liberado para embarcar após negociação.
Ele vai ao Bernabéu porque não pensa em se esconder. Convidado por Carlo Ancelotti, também vai a partida do Bayern de Munique. Se vai perder a guerra, será brigando. Quem tem a doença, geralmente fica trancado em casa. Apesar de todas as dificuldades, o holandês quer ser visto pelo mundo. Colocou na cabeça que as pessoas precisam observar, não apenas ouvir ou ler, o que é a esclerose lateral amiotrófica, como o paciente perde peso e o corpo definha.
De Vries e o diretor Ronald Top produziram o documentário "The Final Battle" (A Batalha Final), que mostra o dia a dia de Ricksen com a doença. O ex-lateral também lançou a Fernando Ricksen Foundation, para financiar pesquisas que aliviem as condições e melhorem a qualidade de vida de quem tem a esclerose. Ele se esforça para continuar fisicamente ativo. De Vries editou a revista "Fernando", à venda pela Internet. Todos os recursos arrecadados vão para a fundação.
"O documentário não é para que ninguém tenha pena dele. Ao contrário, é para inspirar as pessoas. Em vez de sofrer em silêncio, ele quer que todos vejam. Quer compartilhar a mensagem de continuar na luta e nunca desistir. É para passar a todos a ideia: aproveite a vida", declara Top.
A batalha não é só dele. A mulher, Veronika, vasculha a Internet todos os dias em busca de notícias sobre novos tratamentos. É a russa, que encontrou Ricksen quando ele passou pelo Zenit, que o lava e alimenta todos os dias. Acompanha-o a todos os lugares. A filha do casal, Isabella, tem três anos.
Quando recebeu o diagnóstico, os médicos avisaram Ricksen que ele teria mais seis meses de vida. No máximo, 12. Isso aconteceu em 2013. Mais de três anos depois, continua vivo. Mais importante do que isso, acredita que pode ser a primeira pessoa a derrotar a esclerose lateral amiotrófica. O que é a vida, afinal, sem esperança?
"Eu sempre disse: vai chegar o dia em que um homem vai vencer essa doença. Permitam que eu seja este homem! Permitam que eu seja o primeiro ser humano a colocar esta fera de joelhos! Sei que isso pode ser tudo, menos uma batalha justa. Esta doença, este demônio, é letal. Então, não posso fazer tudo sozinho. Preciso de ajuda. Apenas juntos podemos chutar as bolas dessa doença", diz a mensagem no site da sua fundação.
Como jogador, a imagem de Ricksen também foi de guerreiro. Alguém que dava tudo em campo e jamais tirava o pé de uma dividida. Suas contas nas redes sociais estão recheadas de mensagens de torcedores do Rangers, de Glasgow, onde atuou por quase seis anos. Também teve fama de bad boy. Com justiça.
Fez apenas 12 jogos pela seleção holandesa porque destruiu a porta de um hotel após noitada de bebedeira em uma das convocações. No time escocês, empurrou o presidente John McClelland na piscina durante viagem de pré-temporada pela África do Sul. Em 2006, um de seus últimos atos "defendendo" o Rangers foi brigar com outro passageiro do avião em que o elenco estava. Quando passou pelo Zenit, saiu no braço com o capitão Vladislav Radimov. Tem condenações na Holanda por dirigir sob influência de álcool e por perturbar a ordem pública.
Não bastasse tudo isso, recebeu a duvidosa honra de ser o primeiro jogador do Reino Unido suspenso retroativamente pelo uso das imagens da TV, após ter agredido adversário longe dos olhos do árbitro.
"É triste acompanhar. Porque o corpo vai piorando, mas o cérebro está em perfeito estado. A mente dele está presa a um corpo doente. Fernando acompanha tudo o que acontece ao seu redor e o raciocínio está intacto. É duro de ver porque em campo, Fernando era um guerreiro", explica ao biógrafo.
Para lançar o documentário, eles precisam arrecadar 20 mil euros (R$ 70 mil) e foi lançada campanha de crowdfunding para obter doações.
"No fundo, Fernando sabe que a cura chegará muito tarde para ele. Passou a encarar isso como uma missão: mostrar o que a doença faz com as pessoas. Acima de tudo, continua sendo um lutador", finaliza de Vries.
Fernando Ricksen continua lutando para honrar a tatuagem. Ele é um guerreiro. E um guerreiro não desiste ou se rende.
Fonte: Uol
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