Três anos após o lançamento do Mais Médicos, o programa que provocou polêmica ao recorrer a médicos estrangeiros para atendimento em áreas carentes de
profissionais é agora alvo de novos embates e pode passar por mudanças.
A possibilidade de participação de brasileiros no programa por apenas um ano, por exemplo, é um dos pontos que devem ser revistos. Pelas regras atuais do Mais Médicos, profissionais brasileiros que entram no programa podem optar, entre os benefícios, por receber um bônus de 10% na nota de provas para residência médica, após um ano de trabalho. No entanto, não recebem ajuda de custo para alimentação e moradia, benefício ofertado a outros participantes do programa.
Implementado em 2015, esse benefício de 10% na nota é apontado como um dos motivos que têm levado ao aumento na adesão de brasileiros ao programa –onde 62% dos profissionais são cubanos. Ainda assim, mudanças são defendidas pelo ministro da Saúde, Ricardo Barros (PP-PR).
Para o ministro da gestão interina de Michel Temer, o prazo de participação por apenas um ano não ajuda a fixar os médicos brasileiros em cidades do interior. "Já mandei resolver. Ou vai ser um período em que ele possa se integrar com a comunidade, dois anos ou três anos, ou não vai ser, porque do jeito que está, estamos nos enganando", disse em encontro com entidades do setor.
"O médico não está indo para fazer medicina comunitária, está indo para ganhar ponto para fazer outra especialidade", completou.
À Folha o ministro confirmou que analisa rever a medida. "Em um ano, o médico não se integra à comunidade. Isso não ajuda para a finalidade do programa. Pedi um estudo e espero o resultado."
O programa, criado em 2013 na gestão Dilma e com orçamento anual de R$ 2,7 bilhões, conta com 18 mil médicos, sendo 11,4 mil deles cubanos –4.058 dos 5.570 municípios participam da ação.
REAJUSTES
Há ainda outras mudanças no Mais Médicos em negociação. O governo analisa novas propostas para reajustes dos salários –hoje de R$ 10 mil mensais– e outros benefícios aos profissionais que atuam no programa.
Os pedidos foram feitos por outros estrangeiros do Mais Médicos e pelo governo de Cuba, que envia médicos ao Brasil por meio de uma cooperação com a Opas (Organização Pan-Americana de Saúde).
Além da possibilidade de reajuste, já anunciada, o Ministério da Saúde estuda um aumento de 10% no auxílio a bolsistas que atuam em distritos indígenas.
Também é analisada uma mudança nos valores mínimos exigidos como auxílio-alimentação e moradia, custeados pelas prefeituras. Questionada, a pasta afirma que a medida depende de negociação com Estados e municípios. Outro tema a ser resolvido é a prorrogação por mais três anos da atuação de médicos estrangeiros cujos contratos vencem em 2016.
A medida, que muda a lei do Mais Médicos e retira a exigência de revalidação do diploma, está em discussão no Congresso. Ao menos 1.339 intercambistas –médicos formados no exterior, excluindo os cubanos– e 897 brasileiros já pediram a prorrogação, segundo o Ministério da Saúde.
Médicos cubanos, cujos contratos são intermediados pela Opas, também pretendem pleitear a medida. A organização, porém, tem dito que eles serão substituídos em novembro.
Prefeituras temem transtornos. "Municípios vão ficar desfalcados", diz o presidente da ABM (Associação Brasileira de Municípios), Eduardo Tadeu Pereira, para quem o ideal seria manter os mesmos médicos nos postos por mais três anos. "São médicos que já conhecem a comunidade."
PERMANÊNCIA
A incerteza sobre a prorrogação dos contratos para atuar no Mais Médicos preocupa profissionais cubanos que, às vésperas de completar o prazo de três anos de participação no programa, já planejam ficar mais tempo no Brasil ou até mesmo emigrar para os Estados Unidos.
"Se não puder ficar, a única via é fugir para os Estados Unidos, que tem programa de ajuda a médicos cubanos", afirmou à Folha o médico F., que não quer ser identificado por medo de represálias.
Casado há um ano e seis meses com uma enfermeira brasileira que conheceu durante as reuniões de saúde no município em que trabalha, ele teme ter que voltar a Cuba em novembro, como já anunciou a Opas, que pretende substituir os médicos cubanos.
"Cuba tem uma lei migratória que, no nosso caso, só autoriza a sair do país de novo cinco anos depois", justifica o médico, que compartilha a preocupação com a nova família no Brasil. "A situação é muito difícil. Se ele não puder ficar, vamos ter que nos separar, porque não poderia acompanhar", afirma a brasileira V.
Em meio ao imbróglio, o Ministério da Saúde já anunciou que pedirá para prorrogar os contratos. Na prática, diz F., a resposta é outra. Em busca de confirmação, diz que ligou três vezes ao telefone 136, da Ouvidoria do ministério. Nas três, ouviu que seria substituído. "A resposta é que temos que voltar a Cuba", relata o médico.
Sem saída, recorreu à Polícia Federal para obter visto permanente de posse dos documentos que apontam que se casou com uma brasileira. Hoje, monitora um grupo de WhatsApp onde troca mensagens com outros cubanos que também desejam permanecer no Brasil.
Pelas contas do grupo, diz, há entre os 11.429 cubanos do Mais Médicos ao menos 600 que se casaram no Brasil e querem ficar. Questionada, a PF não informou quantos deles já procuraram pelo visto.
REVALIDA À VISTA
Um desses médicos é O., que hoje vive com a mulher, brasileira, e a filha de 11 meses. "Não gosto de pensar em desertar", diz ele, que também planeja obter o visto permanente para ficar no Brasil e tentar o Revalida, exame de revalidação do diploma. "É a única solução. Prefeito e a população também querem que fiquemos", relata.
O ministro da Saúde, Ricardo Barros, no entanto, já disse à Folha que a participação dos profissionais do Mais Médicos no Revalida não é de interesse do governo, "porque tira a vaga de brasileiros."
Ainda assim, até que a prova ocorra, os médicos dizem esperar que o impasse seja resolvido. A busca por informações sobre a prorrogação do contrato, porém, não atinge apenas os médicos cubanos. Alocado em uma unidade de saúde em Lapa, no Paraná, o português Miguel Alpuim, 73, também atesta: gostaria de ficar.
Há três anos, ele foi um dos primeiros a chegar no Mais Médicos. Entrevistado pela Folha na época, justificou a adesão ao programa pela oportunidade de trabalhar aos 70 anos. Em Portugal, estava parado há um ano. "Sou o mais velho do programa", relata. "Não quis ficar parado. Pretendo trabalhar até o fim".
Hoje, Alpuim é um dos 1.339 intercambistas (estrangeiros e brasileiros formados no exterior) que já enviaram ao Ministério da Saúde a intenção de prorrogar o contrato e esperam a decisão do Congresso sobre a medida.
E como foram os três anos de participação no programa para esses médicos? "No começo foi difícil", diz O., que relata ter ficado seis meses sem moradia. F. também passou por dificuldades. Hoje, avalia que o problema foi superado. "A população é muito acolhedora." Visão parecida tem Miguel Alpuim. "Me sinto em casa."
EMBATES
Ao mesmo tempo em que ganhou apoio de parte da população, o Mais Médicos se manteve nos últimos três anos como alvo frequente de embates entre governos, movimentos de saúde e entidades médicas.
Diante de possíveis mudanças em critérios do programa, os grupos ainda se dividem. Associações médicas, por exemplo, são contrárias à prorrogação do contrato com médicos estrangeiros.
"Não somos contra médicos que se formaram fora virem trabalhar aqui. Mas, a partir do momento em que não são avaliados, não temos garantia de que são bons médicos", diz o presidente da Associação Médica Brasileira, Florentino Cardoso.
Outras propostas, como a mudança nas regras que hoje ofertam a participantes brasileiros bônus de 10% na nota em provas médicas, têm ganhado apoio.
Para Cardoso, a possível mudança em relação às regras do Provab, como é chamada a modalidade em que o médico brasileiro opta por ficar por um ano no Mais Médicos em troca de um bônus de 10% na nota de residência médica, é positiva. "O bônus joga o mérito no lixo, e defendemos o mérito."
Carlos Vital, do CFM (Conselho Federal de Medicina), concorda. Para ele, no entanto, é preciso criar outras medidas que incentivem médicos brasileiros a atuarem na atenção básica em municípios mais carentes. "Na hora em que extingue [o bônus], tem que aplicar algo com maior eficácia", diz ele, que defende uma carreira de Estado para médicos.
Já para Heider Pinto, que ficou à frente do programa Mais Médicos por dois anos na gestão Dilma Rousseff, retirar o benefício do bônus pode afastar médicos brasileiros do programa.
Ele lembra que, nas últimas chamadas, a maioria optou por ficar apenas um ano –esse prazo, no entanto, pode ser renovado em seguida. "Retirar o bônus seria um problema. São soluções que podem colocar o programa em risco", diz.
AVANÇOS
Assim como as revisões, os avanços em relação ao programa são outro embate. Para o representante do Conasems, que reúne secretários municipais de saúde, Mauro Junqueira, o programa conseguiu fixar médicos em áreas de difícil acesso.
Heider Pinto concorda. "O programa respondeu à demanda dos municípios onde havia falta de médicos e expandiu a cobertura de atenção básica". Já Carlos Vital questiona essa eficácia. "A população estava desassistida. Se não tinha nada e passou a ter, esse algo a mais dá a aparência que melhorou. Mas isso é diferente de uma verdadeira resolubilidade", afirma.
Em nota, o Ministério da Saúde diz que monitoramento feito pela pasta mostra aumento de 33% no número de consultas realizadas nos municípios do programa e redução no total de internações.
Fonte: Folha de São Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sua opinião é muito importante para nós, comente essa matéria!