Negro, o relógio de ponteiros prateados do Pablo's crava 11 da manhã de sábado. Estamos na Villa Devoto, bairro de Buenos Aires, onde os dias só começam às 11h. É
a hora do café da manhã de Amadeo Carrizo, 89 anos, morando aqui há 70.
Goleiro e mito do River Plate por 24 anos (1944 a 1968), Carrizo está lúcido e cercado pelos amigos de sempre. Senta-se na mesa do fundo, pede o cortado (café com leite), ri, faz questão de pagar a conta, conversa com o blog.
Você foi amigo de Paulo Valentim, não, Amadeo?
El Moreno! Sim, amigos. Nossos encontros em campo eram duros. Muito forte, rápido, esperto, o Tim. Fomos bons companheiros.
E fora de campo, qual a onda entre vocês?
A melhor possível. Com um bom vinho na mão não importa Boca ou River, ¿viste? Valentim falava que a fama dele aqui era graças a mim, por tantos gols que fez (ri).
Paulo morreu com dificuldades. E você estava por perto.
Sim, como não iria estar? Éramos colegas de vida, não de futebol. Muitos outros daquele tempo fizeram o mesmo. A amizade é especial. Dar uma mão, não.
***
É uma grande história, esta. O atacante brasileiro, maior artilheiro do Boca Juniors em jogos contra o River Plate, foi ajudado até os seus últimos dias pelo maior goleiro da história rival, aquele que foi vazado e humilhado pelos seus gols.
Fuerte, eh.
De Carrizo já falamos. Agora, Paulo Valentim – 'Tim, tim, tim! gol de Valentim!'.
Atacante do Atlético-MG e do Botafogo de Didi, Garrincha e Nilton Santos, Pablito chegou ao Boca em 1960. Brilhara pela seleção em Buenos Aires no Sul-Americano de 1959. Brigou com todos os uruguaios e fez todos os gols do 3×1 Brasil.
Era furioso, Valentim. Mandou nada menos que dez gols em sete jogos contra o River em 1961 e 1962. Nada de Tevez, Palermo ou Maradona.
Tim, tim, tim. Ainda hoje, 2016, contra o River ninguém foi mais que Valentim.
Bicampeão argentino (1962 e 1964), fez 71 gols em 115 jogos pelo Boca.
Foi casado com Hilda, que inspirou o romance Hilda Furacão e a minissérie homônima na TV Globo.
Hilda Maia Valentim foi a primeira-dama do Boca Juniors quando o marido lá brilhava. Tinha um palco só seu na Bombonera.
Viviam em Buenos Aires o luxo dos asados, Impalas e da Recoleta. Moravam no apartamento das “paredes de veludo'' da Hilda. Tiveram um filho, Ulisses.
Em 1964, a revista El Gráfico mostrou Valentim desnorteado e reclamando da saúde e da falta de dinheiro. Tinha só 29 anos.
Em 1965, deixou o Boca. Já era sombra agridoce do atacante picante que fora. Os excessos fora de campo pesavam suas pernas.
Sua vida claudicante incluiu viagens ao México e ao Brasil. Jogou no São Paulo.
Voltou à Argentina, onde morreu em 1984, aos 50 anos vividos a mil.
Era 9 de julho – data que batiza a mais famosa avenida de Buenos Aires.
No dia seguinte, foi velado no hall principal da Bombonera, estádio onde hoje há busto com seu rosto e nome. Está enterrado na Chacarita, como Carlos Gardel.
Depois da morte de Paulo e do filho Ulisses, Hilda ficou em asilo de Buenos Aires até suspirar, em 2014, pela última vez. Tinha 83.
Em dias como este domingo, com mais um superclássico entre River x Boca, ouvidos mais sensíveis e experientes passam pela calle Brandsen, ali perto das boleterías, e ouvem, bem forte, o “Tim, tim, tim! Gol de Valentim!'' de 50 anos atrás.
As maiores lembranças vêm do silêncio. E da amizade.
Fonte: Uol
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