O Jornal Nacional exibe a terceira reportagem da série O Quinze: Travessia, inspirada no livro de Rachel de Queiroz. Neste episódio final, os repórteres Felipe Santana
e Alex Carvalho contam histórias de quem foi expulso pela seca, mas que ainda acredita que é possível viver no sertão.
Se na hora de cruzar um rio, a água bate no joelho e, logo depois, a lama do fundo quase faz atolar, é motivo para comemorar?
“Dia sim, dia não eu apanho um feijãozinho, apanho uma batatinha, uma macaxeira, uma coisa. Vou esperando e vai escapando...”, diz o agricultor Aloísio da Silva.
A falta de chuva secou o açude e revelou um terreno fértil, um dos únicos pedaços de terra onde dá para plantar. “Nunca faltou o pão dos meus filhos, não, graças a Deus e nem o meu”, conta Aloísio.
Num pedaço de serra, onde chove muito mais do que no sertão, a paisagem é muito mais verde. Um lago ter secado poderia ter sido uma boa notícia pelo menos para as 30 famílias que moram no entorno e estão conseguindo plantar na beirada agora e assim garantir a subsistência. Acontece que, na verdade, o lago é uma barragem, que é responsável por abastecer uma cidade de 35 mil pessoas. E é a única fonte de água que eles têm.
A reportagem chega a Baturité. É a próxima parada de O Quinze: Travessia.
É dia de feira. Se você fosse jovem em Baturité, o que pensaria para o futuro? Todos os sonhos são muito parecidos.
“Eu faço faculdade de Ciências Contábeis. É um sonho de crescer na vida”, diz um rapaz.
“Meu pai não teve oportunidade. Por isso que hoje, graças ao trabalho dele, ele trabalha bastante, ele é muito organizado e conseguiu colocar nós duas para concluir os estudos”, diz uma jovem.
“Quero ficar aqui, no Baturité mesmo”, conta outra jovem.
“O futuro é crescer aqui, me tornar um bom profissional na cidade”, completa o jovem.
No final da noite, a praça fica lotada. Não cabe tanta gente na igreja. Mas se a barragem está seca, como a água chega ao local? Do mesmo jeito que chega para quase todo o estado: centenas de caminhões-pipa são abastecidos por dia em Maracanaú, já bem perto de Fortaleza.
Antônio entrou na fila às 22h da noite anterior para encher o caminhão-pipa. E ainda tem uma grande missão pela frente: primeiro, são 60 quilômetros de asfalto, mas é na parte final da travessia que tudo vai ficando mais difícil. Cai a noite e só aí Antônio consegue finalmente ligar a mangueira na cisterna. E da escuridão saem as primeiras pessoas.
“Graças a Deus com essa água é a benção de Deus mesmo”, diz uma moradora.
“Isso aqui a gente não faz isso pelo dinheiro, mas mais pela boa vontade de botar água para o povo que não tem. Porque o dinheiro para eu ganhar eu trabalho no carro em Fortaleza, qualquer lugar”, destaca um motorista do caminhão-pipa.
Fortaleza é o primeiro destino de quem corre da seca no Ceará. O lugar também era o destino do personagem Chico Bento, de "O Quinze".
A travessia do personagem fictício termina em um lugar muito real. Há 100 anos, chegava um trem onde desembarcavam os retirantes que conseguiam um bilhete.
E bem em volta foi construído o chamado "campo de concentração". Esses lugares eram cercados e vigiados pela polícia. Quem chegava ao local recebia um suprimento de comida, dormia em qualquer lugar, às vezes tinha a cabeça raspada para evitar a propagação de doenças. A ideia é que eles não se misturassem ao resto da cidade.
Sobraram as ruínas desse capítulo trágico. Isso poderia marcar o fim dessa história, acontece que ela não acabou.
Quem discorda que 2015 poderia ser chamado outra vez de "O Quinze"? Esse foi "O Quinze" da vida de muita gente. E o cenário descrito por Rachel de Queiroz no Ceará, agora foi visto por todo o Brasil.
"O próprio leito das lagoas vidrara-se em torrões de lama ressequida, cortada aqui e além por alguma pacavira defunta que retorcia as folhas empapeladas."
Cantareira, Paraíba do Sul, Furnas. No Ceará, “O Quinze” parece que nunca deixou de existir, pelo menos na vida dos que fugiram da seca, mas hoje se misturam à cidade.
Nas periferias...“Eu vim porque lá serviço não tem, água não tem. Tem que vir para cá para ganhar o pão”, conta um trabalhador.
Nas ruas... “Lá era uma vida sofrida, tá entendendo? e eu não queria o mesmo destino do meu pai e da minha mãe”, afirma um rapaz.
Uma gente que ganha a vida como pode, que se mistura à cidade ao sabor das circunstâncias, que emociona a família pela trajetória de luta.
“Sinto mal eles passando essas necessidades lá na seca”, diz uma jovem chorando.
E uma vontade permanece adormecida: “Se eu pudesse, eu voltava ao passado”, diz um homem.
Eles sonham em voltar para o sertão: “Um dia quando eu me aposentar, eu vou voltar pra lá”, avisa outro.
E quem desconfia da força do desejo e da vontade que nos puxam sempre lá? Onde quer que lá seja.
Fonte: Jornal Nacional
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