Documento sigiloso de 1969 entregue pelos EUA ao governo brasileiro —tornado público pelo Arquivo Nacional nesta quinta-feira (9) em um lote de 538 conjuntos de papéis— sugere que o ex-presidente da CBF (Confederação
Brasileira de Futebol) José Maria Marin funcionou como fonte de informação dos norte-americanos junto à ditadura brasileira.
Na época, Marin era presidente da Câmara de Vereadores de São Paulo. Documentos em poder do Arquivo Nacional e divulgados em 2013 pelo UOL já haviam indicado estreitas ligações de Marin com a ditadura. Um relatório do governo na época dizia que Marin fora eleito presidente da Câmara, em 1969, a partir de "um esquema montado" pelo chefe de gabinete do ministro da Justiça "com o apoio de correntes militares".
Hoje Marin está preso na Suíça, sob suspeita de envolvimento em fraudes e corrupção no futebol investigadas pelo Departamento de Justiça dos EUA.
O telegrama que cita Marin é datado de 16 de setembro de 1969, nove dias após a libertação do embaixador norte-americano no Brasil Charles Burke Elbrick (1908-1983), que fora sequestrado no Rio por militantes da ALN (Ação Libertadora Nacional) e do MR-8. Segundo a Embaixada dos EUA em Brasília, o brigadeiro "linha-dura" do Quarto Comando Aéreo, em São Paulo, José da Silva Vaz, "aparentemente disse ao presidente da Câmara de Vereadores de São Paulo, José Maria Marin, em 14 de setembro, que a CIA [órgão de inteligência do governo dos EUA] engendrou o sequestro". A embaixada manifestou preocupação sobre "a recorrência do mesma tema de diferentes fontes" de informação.
O documento não faz referência direta a Marin como fonte da conversa com Vaz e não esclarece se o então vereador era fonte constante ou remunerada dos americanos. Por outro lado, é comum em documentos do gênero uma referência apenas indireta às fontes, a fim de preservá-las em um eventual vazamento de dados.
As diversas investigações oficiais, trabalhos acadêmicos, livros e filmes sobre o sequestro de Elbrick nunca corroboraram a teoria conspiratória da participação da CIA —assim, se Marin foi mesmo a fonte, repassou aos diplomatas dos EUA uma informação errada.
A embaixada afirmou, no telegrama, haver uma tendência "de elementos da direita de culpar os EUA pelo sequestro". Uma das teorias dizia que os EUA queriam "desmoralizar" o Brasil a fim de obter ganhos em negócios bilaterais.
Também houve a acusação de que o embaixador foi negligente a respeito de sua segurança. Quando ele foi raptado, em 4 de setembro, estava acompanhado apenas de seu motorista.
As fontes ouvidas pelos americanos entenderam que, ao virar o dedo para os EUA, a ditadura brasileira manifestava, na verdade, dificuldades internas para solucionar o caso.
Telegrama que sugere que José Marin foi fonte dos EUA na ditadura |
"INTENSO"
Os documentos há pouco liberados também confirmam que os EUA sabiam que a repressão brasileira utilizava "interrogatório intenso", um eufemismo para tortura, para obter informações que levassem à localização de militantes da esquerda. Um dos telegramas relata que o paradeiro da psicóloga e professora Iara Iavelberg (1944-1971), um ativo nome da esquerda armada na época e namorada do guerrilheiro Carlos Lamarca (1937-1971), então um dos principais alvos da ditadura, foi descoberto a partir de informações fornecidas por um militante de esquerda, identificado apenas por um codinome, após ter sido submetido a "intenso interrogatório" conduzido por um militar de Salvador (BA) identificado no documento como Lima Araújo.
Quando houve o cerco ao apartamento que ocupava, no bairro de Pituba, em Salvador, Iara refugiou-se em um apartamento vizinho, onde morreu a tiros —na versão oficial, acolhida pelos diplomatas americanos, ela deu um tiro no próprio peito; para parentes e amigos, que se baseiam em relatos de testemunhas e ausência de quaisquer evidências materiais sobre o suicídio, ela foi assassinada a tiros.
"SEM DÓ"
Dentre os documentos liberados há diversos informes e análises dos servidores do governo dos EUA sobre as recorrentes denúncias de tortura, divulgadas pela imprensa e outros meios, promovida pela repressão contra presos políticos.
Em 23 de abril de 1970, um funcionário do Departamento de Defesa dos EUA baseado no Brasil relatou a Washington uma conversa que manteve, durante um coquetel, com um "funcionário policial" cujo nome foi tarjado na documentação enviada ao Brasil —diversos outros desses documentos ainda contêm extensos trechos com tarjas.
"O Brasil está em guerra, embora seja uma guerra contra a subversão. [...] Não pode haver dó pelo inimigo", teria dito esse funcionário ao norte-americano, segundo o telegrama.
De acordo com o policial, os brasileiros apenas estavam repetindo o que os EUA já faziam na época contra seus inimigos capturados durante a guerra no Vietnã.
"Nós devemos lutar contra eles [esquerdistas] com todos os meios necessários no sentido de vencê-los [...]. O que nós estamos fazendo não é diferente do que os americanos têm feito aos prisioneiros no Vietnã por muitos anos", a fonte disse ao americano. O brasileiro disse que o governo agia para "proteger vidas de brasileiros".
"Nossas ações não são pelos prazeres do sadismo, mas para quebrar as organizações deles. Isso nós temos feito quase sempre com sucesso e ele estão usando a questão da tortura na esperança de prejudicar nossa eficácia", procurou se explicar o homem da polícia.
Nesse documento, os norte-americanos evitam confirmar a prática da tortura no Brasil —outros telegramas são assertivos—, mas reconhecem que mesmo que se cogite que a prática de "torturar e humilhar terroristas e subversivos capturados" não seja uma política de governo, "não há muita simpatia por eles ou suas queixas por proteção pelo [próprio] sistema que eles juraram destruir pela violência".
Procurados pela Folha, os sócios do escritório de advocacia de São Paulo que representa Marin em ações judiciais no Brasil não foram localizados no início da noite desta quinta-feira (9).
Fonte: Folha de São Paulo
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