O mercadinho Céu Azul é um negócio familiar ao rés do chão da Rua Felizardo, num bairro de classe média alta de Porto Alegre. A estrutura e a fachada do mercadinho são de lataria, às quais foi aplicada uma demão de tinta azul-bebê.
Lá, trabalha Sinandro Perin Batistel, de 33 anos, que abandonou seus estudos antes de completar o ensino fundamental. Sua tarefa é espetar nas gôndolas os preços das mercadorias. Ganha R$ 1.000 por mês, sem carteira assinada. No dia a dia, Sinandro manuseia valores que, de tão pequenos, vêm sempre acompanhados dos centavos. É um homem de moedinhas.
Sinandro tinha uma poupança de R$ 30 mil, graças a uma herança da mãe, morta há 20 anos. Em 2010, seduzido por promessas de rentabilidade espetacular com aplicações na Bolsa de Valores, ele entregou suas economias a um operador do mercado financeiro, que agia em nome da RPI Invest Agente Autônomo de Investimentos. A falência veio aos poucos, em pequenas operações que ele não acompanhava e diminuíam sistematicamente o valor de seu investimento. Quando Sinandro acordou, descobriu que não lhe restava mais nada. “Perdi tudo. Fui enganado”, diz Sinandro. Para ele, mercado é uma palavra que define estabelecimentos como o Céu Azul. “Não sei o que é Bolsa de Valores e mercado financeiro.”
Sinandro é uma das vítimas de um golpe que se multiplica pelo Brasil. O golpe já tungou cerca de R$ 100 milhões de pequenos investidores, segundo duas investigações em curso na Delegacia de Repressão a Crimes Financeiros da Polícia Federal, em Porto Alegre. Segundo os investigadores, a RPI, que roubou Sinandro, é um lobo alfa no ecossistema formado por dezenas de firmas e agentes autônomos que operam à margem da lei – e vão atrás do dinheiro de pessoas comuns, as “sardinhas”, no jargão do mercado financeiro. São os lobos da Bovespa, que têm em pessoas como Sinandro, simples e com o sonho de enriquecer, suas presas mais fáceis.
A primeira investigação surgiu em 2013. A PF e a Comissão de Valores Mobiliários, a CVM, que fiscaliza o mercado de capitais, uniram-se para apurar uma denúncia feita por um investidor que perdera todo o seu patrimônio com operações feitas na Bovespa sem seu consentimento. Em setembro do mesmo ano, foi deflagrada a Operação Churning, para desmantelar um esquema de compra e venda de ações na Bolsa e administração ilegal de recursos – que levou dezenas de clientes à falência. Em outubro, foi aberto o segundo inquérito, para investigar a atuação de outro grupo de operadores do mercado, que transformavam em pó o dinheiro de pequenos investidores. “O que aconteceu no Rio Grande do Sul é um retrato do que ocorre no Brasil inteiro, principalmente depois da queda das ações na Bolsa”, diz Sérgio Eduardo Busato, delegado da PF responsável pelas investigações, que deverão ser concluídas até o fim de abril. Busato não quis comentar detalhes dos processos sob sigilo.
Os dois inquéritos revelam que os lobos da Bovespa tinham dois perfis preferenciais de presas. O primeiro é o de pessoas como Sinandro, de pouca instrução e que não tinham nenhuma familiaridade com a Bolsa de Valores. A elas, eram prometidos retornos de até 30% ao mês e com risco zero. Mas os lobos investiam também na caça de um segundo perfil de vítima: poupadores de renda mais alta, como advogados, empresários, engenheiros e servidores públicos, que possuíam aplicações conservadoras em grandes bancos. Para eles, era prometida uma rentabilidade sem igual no mercado: de até 6% ao mês, o mesmo rendimento anual da poupança. “Vendi um apartamento de três dormitórios e 90 metros quadrados, avaliado em cerca de R$ 450 mil, para investir tudo na Bolsa por meio de uma empresa chamada D&F Trade”, diz o engenheiro Cézar Castilho Maciel, de Porto Alegre. Maciel teve quase perda total de seu investimento.
Após conquistarem os clientes, os operadores colocavam em prática a segunda fase da fraude. Em vez de repassar o dinheiro captado para as corretoras com as quais mantinham uma parceria comercial, seguindo as regras da CVM, eles mesmos administravam os recursos. Agiam assim como uma instituição financeira, mas sem autorização do Banco Central e da CVM. Para enganar as vítimas, os golpistas criaram contas bancárias atribuídas a firmas com nomes semelhantes aos de corretoras conhecidas no mercado. Uma delas possuía o CNPJ da empresa D&F Agentes Autônomos de Investimentos, era identificada como D&F Votorantim Ltda., mas não tinha qualquer ligação com a corretora Votorantim.
Os fraudadores também realizavam milhares de operações em nome de seus clientes sem prévia autorização. Em alguns casos, eles usavam a senha da conta bancária dos investidores para fazer as transações. Em outros, criavam e-mails falsos em nome dos poupadores para evitar qualquer problema com a fiscalização das corretoras por meio das quais operavam. “E se o pessoal (da corretora) do Bradesco entrar em contato com ele (o cliente) confirmando o e-mail?”, pergunta um dos funcionários da D&F numa mensagem eletrônica, captada pela PF. “Eles não confirmam”, responde Desirré Bitencourt Pacheco, sócia da D&F, uma das principais suspeitas das fraudes.
Por trás dos e-mails falsos, havia uma engrenagem que realizava milhares de operações na Bolsa, em que eram cobradas comissões por inúmeras taxas de corretagens que incidiam sobre a movimentação do dinheiro dos clientes. Ou seja, quanto mais os lobos negociavam ações na Bovespa, mais lucravam. Nos Estados Unidos, essa prática irregular é conhecida como churning, que consiste em realizar um volume intenso de transações no nome de um único investidor. Em um ano, os recursos movimentados irregularmente na conta do cirurgião plástico Sérgio Damiani, de Porto Alegre, foram equivalentes a 232 vezes o valor investido por ele. “Eu não poderia ter dado essas ordens, porque estava trabalhando numa cirurgia”, disse Damiani em depoimento à PF, no qual disse ter perdido R$ 165 mil.
O giro de negócios no pregão era tão intenso que alguns clientes pagavam taxas exorbitantes, que somavam o valor do investimento. Numa conversa telefônica obtida pela PF, o sócio diretor da corretora Prosper, Armênio dos Santos Gaspar Neto, demonstra sua preocupação ao constatar que um único cliente estava pagando cerca de R$ 300 mil em taxas de corretagem. “Isso aí vai dar problema”, diz Gaspar Neto a um dos suspeitos das fraudes. “Você tem de ser diligente. Você não pode gastar dinheiro assim... Eu já fui multado na CVM por causa disso. Compra um papel ruim, faz um negócio ruim que você vai ver...”, completa Gaspar Neto. Muitas operações resultaram em grandes prejuízos. O objetivo era produzir corretagens em escala para os fraudadores – e não lucro para os clientes. Procurado, Gaspar Neto não respondeu a ÉPOCA até o fechamento desta edição.
Numa conversa entre Fabiano Manoel Teixeira, controlador da D&F, e seu irmão Alexandre Olmiro Teixeira, tambémobtida pela PF, fica evidente como os lobos escarneciam de suas presas: “Não judia muito...Vê os clientes que têm saldo e faz”, diz Fabiano. “Faz à vista ou faz day trade (compra e venda no mesmo dia) para dar 1.000 (reais) de prejuízo no máximo.” Marcus Vinícius Boschi, advogado de Fabiano e de sua sócia Desirré, disse que as acusações são injustas. Segundo ele, havia ordem dos clientes para realizar as transações, que estão documentadas. “Dois processos indenizatórios foram julgados favoravelmente à D&F”, diz Boschi. “Uma decisão foi revertida em segunda instância. A outra ainda não chegou à segunda instância do Judiciário.”
Segundo o advogado Fabiano Menke, que representa um grupo de mais de 20 investidores lesados nas fraudes, uma das táticas usadas pelos lobos era se gabar de ter enriquecido rapidamente. “Eles diziam aos clientes que seria possível conseguir o mesmo feito em pouco tempo”, diz Menke. A D&F foi fundada por Fabiano Teixeira, um ex-gerente do Bradesco, que recebia antes um salário de cerca de R$ 8 mil. A firma nasceu em junho de 2008 com capital de R$ 10 mil e tinha apenas dois funcionários. Apenas em 2011, embolsou quase R$ 5 milhões. A RPI Invest recebeu quase R$ 2 milhões em comissões pagas pela corretora Souza Barros entre julho de 2008 e março de 2011. Foi ela que sumiu com o dinheiro de Sinandro, o auxiliar do mercadinho.
Fonte: Época
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