“Jesus pode ter sido heterossexual, bissexual ou homossexual”. A afirmação é do paulista Roberto Francisco Daniel, de 49 anos, que
ainda se apresenta como Padre Beto, embora tenha sido excomungado pela Igreja, em 2013. No último domingo, o Vaticano confirmou a decisão, e ele foi obrigado a deixar a Diocese de Bauru (SP), depois de 14 anos, por se recusar a negar esta e outras reflexões publicadas na internet. Formado em Teologia, Direito e História, ele acaba de lançar, na livraria Indigo Books, na Barra, seu sexto livro, que promete mais polêmica: chama-se “Jesus e a sexualidade — Revelações da Bíblia que você nunca viu”.
— Quero passar a mensagem de que Jesus não se opõe à diversidade sexual — diz o paulista.
Beto garante que suas afirmações estão embasadas em informações presentes nos quatro Evangelhos e nos textos apócrifos. E cita, por exemplo, o fato de Jesus ter curado um servo intimus de um centurião romano sem tachar de pecaminoso o ato homossexual, diferentemente do que ocorreu ao socorrer uma adúltera:
— Jesus estava mais interessado na qualidade dos relacionamentos do que em saber se esse relacionamento era hétero, homo ou bissexual — afirma.
O escritor sustenta que, nos Evangelhos, Cristo é mais visto em situações festivas do que em templos:
— O milagre da transformação da água em vinho quer dizer que a festa continua.
Para ele, o problema está na interpretação fora de época e contexto que fazem do livro.
— O verbo se fez carne. Ao se fazer carne, ele se fez um de nós, um ser sexuado, que tinha uma libido. Jesus Cristo era um ser que, provavelmente, tinha prática sexual — diz.
No novo livro, o religioso fala também sobre a família. E diz que a de Jesus não seguia o padrão pregado pelo Cristianismo:
— Maria, em princípio, é uma mãe solteira. José se casa com ela para salvá-la e adota um filho que não é dele. O que faz esta ser uma família sagrada é que um se interessa pela vida do outro.
Embora não pense em voltar ao sacerdócio, Padre Beto — que mesmo excomungado ainda realiza cerimônias, “em nome de Deus” — move um processo na Justiça comum contra a Diocese de Bauru, alegando que não teve chance de defesa. Diz que publicou suas convicções em nome da liberdade de pensamento e não se arrepende:
— A única coisa errada que fiz foi pensar, mas isso é um dom de Deus que falta neste país. O pensamento e a reflexão são saudáveis. É a Igreja que está pecando neste sentido.
Após a excomunhão, Beto lançou o livro “Verdades proibidas”, também com opiniões no mínimo originais.
OGLOBO: O que o senhor aborda no livro?
Beto: O livro quer mostrar que a atual moral sexual das Igrejas Cristãs, inclusive da Igreja Católica, faz muito mais mal ao ser humano do que bem. Porque trata a sexualidade de forma extremamente negativa. Ela parte do princípio de que a sexualidade é um mal em nós. A partir daí ela vai tentar aplicar regras de conduta no ser humano que são extremamente castradoras à vida sexual humana. Eu abordo no livro não só esse aspecto negativo, mas o aspecto positivo de como a sexualidade pode ser vista de uma forma cristã e extremamente positiva.
Quando teria começado esta frustração?
Essa castração começa com o surgimento de outras filosofias que Jesus não conheceu e que entraram no Cristianismo, como a filosofia estoica, que é uma filosofia romana que entra no cristianismo trazida por Paulo. Depois o platonismo, através de Santo Agostinho. Outro fator importante é que hoje se tem uma leitura da Bíblia extremamente acrítica, não respeitando a mentalidade da época, o surgimento do Cristo e o contexto em que ele surgiu. Então se transfere conceitos da Antiguidade para o século XXI, que são conceitos extremamente atrasados sobre a sexualidade.
O que tem de tão diferente da Antiguidade para a época atual?
Como o homem não conhece o que é sexualidade, ele basicamente vai entender a sexualidade, ou esse fenômeno, como a heterossexualidade. Então, seu universo é heterossexual, apesar de a bissexualidade ser generalizada na Antiguidade. Aí nós temos frases na Bíblia que condenam o homem deitar com outro homem. São frases que dizem respeito não á sexualidade humana, mas ao culto que era realizado ao deus Baal, e a outros deuses, que envolviam orgias sexuais, entre elas a prática da homossexualidade. O texto (da Bíblia) se refere a essas orgias, mas hoje se entende essas frases simplesmente se referindo à homossexualidade, o que não é uma referência à homossexualidade.
Então o problema não é a Bíblia. É a interpretação da Bíblia?
Exatamente. O problema é o conhecimento do texto bíblico. É conhecer que o autor das cartas de Paulo é um autor que tem uma cultura estoica, que vai trazer essa cultura para o cristianismo, ele vai abraçar isso, e Jesus Cristo está muito longe dessa filosofia. Jesus vai ter uma prática de vida enxergando a mulher como ser igual a Ele. Não vai tratar a mulher de forma diferenciada.
É aí que está a maior polêmica do seu livro, a sexualidade de Jesus?
É em relação à visão da sexualidade de Jesus. Jesus parte do princípio de que o amor a Deus e o amor ao próximo deve ser o que norteia a nossa ação. Agora, o que vai contra o amor a Deus e o amor ao próximo? É o desamor e não a sexualidade. A sexualidade não é um ato de desamor em si, pelo contrário. A partir daí o Cristo vai viver uma vida de muito prazer.
Que tipo de prazer?
Por exemplo, seu primeiro milagre é transformar água em vinho num casamento. Isso quer dizer que a festa continua, que o beber continua, o prazer da bebida, da conversa, da alegria. É um vinho que embriaga. O texto é muito claro em dizer isso. O Cristo vai estar muito mais presente, nos Evangelhos, em jantares e reuniões festivas do que na própria Sinagoga, que era a Igreja da época. Ele é um ser muito mais voltado ao contato humano.
Isso permite dizer que Cristo tinha relações sexuais, que teve esposa e filhos?
Nós acreditamos que o verbo, e isso é uma frase literal da Bíblia, se fez carne. Ao se fazer carne, Ele se faz um de nós, um ser sexuado, que tinha, com certeza, uma libido e hoje nós podemos muito bem entender isso. Portanto, Jesus Cristo era um ser que provavelmente tinha práticas sexuais. O que não sabemos exatamente é quais são essas práticas. Temos pistas no Evangelho de Felipe, que é um Evangelho apócrifo, em que Maria Madalena é vista como companheira de Jesus. Aí é que Dan Brown (autor do livro “O código Da Vinci”) vai se apegar. Do outro lado, temos o Evangelho de João, que cita sempre um discípulo muito amado. “O” discípulo muito amado. Porque um discípulo muito amado? Porque diferenciar um discípulo dos outros? E dessa forma? Então, seria uma conotação da homossexualidade de Jesus. Mas eu observo no livro que vendo Jesus de uma forma geral, como ele se comporta, ele está muito mais para um bissexual do que para um homossexual ou hétero.
No que o senhor se baseia para fazer essas afirmações?
Análise dos textos bíblicos, que é o que nós temos (inclusive os apócrifos de Felipe, Maria Madalena e Tomé) e da cultura da época.
Jesus vivia em que cultura?
Jesus viveu na Palestina, ele não saiu de lá. Então, vive num mundo semita, num mundo Judeu, mas num mundo muito aberto. Ele esteve em Farnaum, que é uma cidade comercial, onde várias culturas estavam presentes. Jesus teve contato com gregos, que consideravam a bissexualidade uma coisa muito normal. E Jesus não é uma pessoa preconceituosa em relação a outros povos. Por exemplo, cito no livro um trecho em que Ele vai curar um servo de um centurião romano, mas o interessante é que esse servo, no texto original, não está como servo, está como “Intimus”.Intimus é um servo sexual e é por isso que o centurião tem tanto interesse na cura desse servo, pois tem uma relação afetiva. Jesus vai curá-lo sem nenhum questionamento moral, com a maior naturalidade possível. Depois de curá-lo, ele não vai fazer como faz com uma adúltera. Apresentam a adúltera a Jesus e perguntam se ela deve ser apedrejada ou não. E Jesus fala assim: quem não tiver pecado que atire a primeira pedra. Ninguém atira. E Jesus fala que não a condena, mas a orienta a não voltar a pecar. Quer dizer, para Jesus a traição é um pecado, é um ato de desamor. Mas para o servo do centurião Ele não pede para não voltar a pecar. Cristo simplesmente cura o servo para continuar sendo o Intimus do centurião romano. Jesus está muito mais interessado na qualidade dos relacionamentos do que se esse relacionamento é hétero, homo ou bissexual.
E como ficam as famílias nesta situação?
As Religiões Cristãs levantam demasiadamente, de uma forma exagerada, a defesa da família, mas a família pai, mãe e filha. A família clássica que nós temos na Idade Moderna, que não é o modelo que nós tivemos na história: adultos que se casam por amor e que geram filhos. Se você olhar nos Evangelhos, a família de Jesus não é uma família modelo. Maria, a princípio é uma mãe solteira. Ela fica grávida sem a ajuda de José. José acaba se casando com Maria para que ela não seja apedrejada e adota um filho que não é dele. Temos aqui um núcleo familiar que não é o ideal, segundo as Religiões Cristãs. O que faz essa família ser sagrada é que há um interesse mútuo na vida um do outro.
O senhor viveu 14 anos de sacerdócio, e sempre com essa postura de questionamento e de livre pensamento em seus discursos. Quando isso se tornou um problema ?
A Igreja foi mudando muito com o passar do tempo. Hoje nós temos uma Igreja Católica extremamente dogmática. E o bispo atual não aceitou essa postura reflexiva da minha parte. Aí é que desencadeou a minha excomunhão.
Quais direitos o senhor perde com a excomunhão?
Praticamente todos. O excomungado é a pessoa que recebe, praticamente, a pena capital. Se eu vivesse na Idade Média, eu seria queimado vivo. Se vivesse no século passado, eu não teria vida social e não seria enterrado num cemitério. Hoje se deu uma amenizada. Eu tenho direito à confissão e à unção dos enfermos, no caso de estar à beira da morte.
A comunhão ou participação em missas estão vetadas?
Não tenho direito a nada. Se eu entrasse numa missa hoje, eu seria convidado a sair.
O senhor sente falta?
Sinceramente, não. Sinto uma presença muito forte de Deus. Saí da Igreja de cabeça erguida. Não fiz nada de errado. A única coisa errada que fiz foi pensar, mas isso é um dom de Deus que falta muito nesse país. Acho que o pensamento e reflexão são saudáveis em qualquer ambiente. Infelizmente é a Igreja que está pecando nesse sentido.
O senhor ainda realiza cerimônias?
Não mais em nome da Igreja Católica, mas em nome de Deus. Sou chamado a realizar casamentos ou ir a um velório e dar uma bênção. Sou chamado para atendimentos a hospitais. Enfim, o pessoal ainda me enxerga como padre.
O senhor pensa em ingressar numa igreja evangélica que ofereça mais liberdade?
Não. Cheguei à conclusão de que Igreja não é solução. O Brasil está cheio de Igrejas, somos a sétima potência do mundo, mas a maioria não vive nela (nos benefícios de ser potência). Quer dizer, somos um país cheio de Igrejas, que louva a Deus, mas não somos um país Cristão. A Igreja cria muito mais mentalidade de rebanho do que mente reflexiva.
Porque o senhor mantém um processo na Justiça comum contra a excomunhão?
Entrei com um processo cível contra a diocese de Bauru — não contra a Igreja — para anular esse ato da excomunhão. A igreja pode me excomungar, não tem problema, mas ela tem que fazer direito. E existe um tratado internacional assinado pelo Lula e pelo Bento XVI dizendo que a Igreja não pode fazer ato nenhum em território brasileiro que venha desobedecer à Constituição. No meu caso, a diocese de Bauru desrespeitou totalmente a constituição. Eu não fui intimado, não tive defesa, não tive acesso aos autos, não sabia no nome do juiz que me julgou e fui julgado numa manhã, em questão de horas. Isso para mim é uma questão de honra, uma questão de Justiça.
Fonte: O Globo
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