A venda ilegal de carteiras de motorista chegou à internet. Ao navegar pela web é possível visitar dezenas de sites que comercializam Carteira Nacional de Habilitação
(CNH) de todas as categorias por até R$ 2 mil em até 12 vezes no cartão de crédito em vários estados do País. Em contato com o Terra, o Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo (Detran-SP) afirmou já ter denunciado os sites citados para Delegacia de Delitos Cometidos por Meios Eletrônicos.
A reportagem do Terra fez uma simulação de compra de uma carteira de motorista por um dos sites encontrados. O primeiro passo é a escolha da categoria da CNH. A categoria A (moto) é vendida por R$ 900, seguida pela B (carro) por R$ 1 mil, C (transporte de carga) por R$ 1,5 mil, D (lotação) por R$ 1,7 mil e E (carga pesada) por R$ 2 mil. A equipe optou pela categoria AB (moto e carro), vendida por R$ 1,2 mil.
“Vou precisar de pagamento e simples documentos (RG, CPF e nome completo) primeiro. Os outros (documentos) podem ser depois. Se o pagamento for à vista, tem desconto. Eu trabalho com duas vezes: 50% antes, 50% depois que estiver em mãos. Trabalho com depósito bancário ou transferência, Tem preferência de banco?”, questionou um dos vendedores, em uma longa conversa por e-mail, dando três opções de banco. O prazo informado para a entrega da carteira por correio foi de quatro dias.
Questionado sobre a legalidade do documento, o vendedor garantiu que a CNH era original. “Minha parte eu faço, fazendo a de vocês a minha será concretizada”, disse. “Mas que garantias eu tenho que essa carteira, numa blitz policial ou Detran, não será tratada como falsa? Me preocupo com isso”, disse nossa reportagem.
“Senhor, estou aqui para facilitar a vida de vocês que não têm tempo de estar fazendo exames ou qualquer tipo de burocracia que exige uma autoescola. Não estou fazendo ninguém de bobo. Fazendo sua parte, a minha será feita”, retrucou. “Não estou aqui para te vender um documento falso e sim uma coisa 100% original. Você vai me mandar uma entrada, e assim que chegar e você conferir no Detran, me manda o restante”, completou.
Em contato com o Terra, o advogado Henrique Gomes, especialista em direito no trânsito, se mostrou surpreso com o novo esquema de vendas de carteira e também pontuação por multas. “Pela internet nunca tinha visto. Essa é a primeira vez.”, disse. Pela facilidade e garantia de originalidade, ele acredita que possa haver algum funcionário do Detran envolvido no crime.
“Pode existir esquema lá dentro, mas o duro é pegar e ter alguém de dentro do Detran confessando que vende documento. Tenho vários casos de pessoas que compraram a carteira e tiveram que cancelar. Já atendi clientes com CNH verdadeiras, emitidas pelo Detran e com cadastro do Detran-SP. Ele (o órgão) mesmo bloqueia a carteira emitida por ele por suposta fraude, mas alguém lá dentro emitiu essa CNH e constava no banco de dados do Denatran”, disse o advogado.
O especialista diz que o Detran deveria fiscalizar e que a criação de um órgão isento poderia resolver a situação. Para ele, a presença de despachante e autoescola dificultam a fiscalização. “ A emissão não deveria ser tão fácil e na mão de despachante e autoescola. O Detran confia muito nessas pessoas. Eles têm acesso a tudo. Fica muito fácil induzir essas pessoas a fraude. Mas também o público adora comprar uma cartinha, um negócio de pontuação”, criticou.
Quando uma pessoa tem uma carteira original e precisa renovar, o Detran analisa e faz uma auditoria para levantar supostas fraudes. O órgão usa o perfil do condutor, autoescola, município e endereço de origem para analisar o documento. Com isso, dependendo dos resultados dessa análise, o motorista pode se tornar um suspeito e precisar prestar esclarecimentos na corregedoria.
“Já vi gente sair presa de lá. Alguns preferem não ir e procuram advogado. Então eu analiso, vejo a história para entender o que está acontecendo, até onde o Detran tem provas de que ela comprou e até onde eu tenho como provar que não comprou. Normalmente nenhuma das partes consegue provar nada. É um documento emitido pelo Detran. Opto pelo cancelamento”, explicou.
Segundo Gomes, o crime é bastante comum no Brasil e muitos procuram seus serviços para poder novamente ter uma carteira de motorista. Essas pessoas normalmente compraram as carteiras de maneira ilegal e depois tentam se livrar do documento, bloqueado pelo Detran.
Este foi o caso de uma mulher que disse ter comprado uma carteira de um policial federal há sete anos. “Ele me vendeu a um preço um pouco absurdo (R$ 1,5 mil) e comprei duas categorias. À época, eu trabalhava 24h por 48h e não tinha tempo para fazer as aulas. Sabia que algumas autoescolas vendiam, mas tinha que comparecer pelo menos no início da aula. Já tinha um carro e precisava do documento”, afirmou. A motorista acabou optando por uma forma rápida. “O policial fazia uma investigação dentro do Detran para pegar as pessoas que compravam e vendiam as carteiras. Nessa investigação, ele acabou se envolvendo no esquema e me ofereceu. Por ser de um policial achei que seria seguro, mas não foi dessa forma”, disse a motorista, que preferiu não se identificar.
Ela contou que chegou a usar o documento, mas que teve problemas para renovar a habilitação. “A minha tinha até prontuário, mas foi bloqueada. Eu fiquei um ano com ela, e quando fui renovar, ele (policial federal) pediu para não renovar no Detran, e que era pra ser com ele. Ele já sabia que por ser ilegal ia me complicar. Quando eu liguei para ele fui informada que tinham sido bloqueadas, mas como a corregedoria não tinha provas. Esperei três anos e nada. Então procurei um advogado que cancelou a CNH”, lembrou.
À reportagem do Terra o Detran-SP afirmou ter conhecimento dos sites citados e que “qualquer caso suspeito envolvendo funcionários da empresa será denunciado à ouvidoria”. “A polícia também será acionada, se houver suspeita de crime. O Detran investe permanentemente em recursos de tecnologia para a garantia da segurança de suas informações. Todas as etapas do processo de habilitação exigem a coleta das digitais do candidato para comprovação da identidade, assim como a biometria dos profissionais que atuam nos procedimentos (médicos, psicólogos, instrutores e diretores das autoescolas). A habilitação é impressa em papel-moeda e contém itens de segurança para atestar sua autenticidade e dificultar falsificações (hologramas, impressões em relevo, película protetora, sensibilidade à luz ultravioleta, etc.)”, informou em nota.
Transferência de pontos
Durante a conversa com o vendedor de CNH pela internet, procuramos também por um outro serviço: a retirada dos pontos adquiridos por multas de uma CNH. “Eu trabalho com pontos também. Consigo fazer o processo, mas fica R$ 600. Esse só à vista. Preciso de RG, CPF, número de Renach e nome completo”, solicitou o vendedor, que ofereceu os dois serviços com desconto e um total de R$ 1,5 mil caso fechássemos no dia da troca de e-mails.
O advogado Henrique Gomes afirmou também ser ilegal o processo, já que só é permitido transferir a multa para outra pessoa caso ela esteja dirigindo o carro na ocasião da irregularidade. “Eu não posso transferir se você não tiver dirigindo meu veículo. Isso é ilegal porque prestei informações falsas ao estado. O trâmite é legal desde que seja verdade. Há um mercado que é onde você vende a CNH para receber ponto e há também o informal de ser entre amigos, que também é ilegal. Mas quando você passa para um estranho, e vendendo, caracteriza muito mais o crime”, explicou.
O advogado contou que as pessoas que cometem esse crime utilizam-se de “laranjas” para a prática. “Muita gente responde por passar pontos para laranja. Agora quem é culpado? O Estado. É obvio que quando você faz uma lei dessa, as pessoas têm que prever que vão buscar fraudar. Todo veículo tem que ser cadastrado, o proprietário e condutor, no Detran. Mas não tem outro órgão que fiscalize. O Detran é um órgão muito burocrático. E uma hora você se enche e acaba pagando R$ 1 mil para não ter dor de cabeça. A pontuação é a mesma coisa. O Detran faz da sua vida um inferno”.
Em relação à transferência de pontuação a carteiras de terceiros, o Detran-SP confirmou a irregularidade e disse fazer o possível para tirar esses sites do ar, mas lembrou que há maneiras legais de fazer o trâmite.
“É importante destacar que a legislação federal dá ao cidadão o direito de apresentar recurso contra as multas recebidas ou fazer a indicação do real condutor, quando um motorista é multado ao utilizar o carro de um terceiro. Há empresas que agem dentro da lei e cobram por intermediar, como procurador, esse serviço – que também pode ser feito gratuitamente pelo próprio cidadão ou seu procurador legal. Muitas delas, porém, utilizam de forma equivocada o mote ‘retirada de pontuação’ como uma ferramenta mercadológica. É importante deixar claro que nenhum ponto ‘some’ do prontuário do condutor. Ele é transferido para um segundo condutor que pode ser lesado em caso de irregularidades. Todo este processo fica registrado no sistema, ou seja, é possível fazer todo o tracking da operação em caso de suspeita de irregularidade”, informou o Detran-SP.
Fonte: Terra
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