A irmã Inez de Souza Carvalho, que mora em Paranaguá, no litoral do Paraná, rompeu barreiras do tradicionalismo e aderiu ao rap e ao
hip hop para levar a religião aos jovens com dependência química e aos moradores de rua. Ela canta, dança e usa hábitos estilizados – tudo para adequar a linguagem ao público. O método diferenciado, segundo a freira, é eficaz. Inclusive, os shows têm sido requisitados fora do estado para eventos religiosos ou com a intenção de assistir adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Para o mês de agosto, há apresentações marcadas em São Paulo e Rio de Janeiro. Tanto sucesso já fez com que ela ganhasse títulos de Freira do Rap e de Madrinha dos Raps do Paraná.
“Eu precisava evangelizar esses jovens, mas era impossível. Uma freira falar de Deus, catequisar, falar que Deus os ama, é difícil. Eles falavam que isso não existe”, conta a irmã Inez. De acordo com a Secretaria Municipal de Assistência Social de Paranaguá, apenas no mês de julho, passaram pelo serviço de atenção a pessoas em situação de vulnerabilidade, 59 pessoas. A estimativa do poder público é de que mais de 90% deles tenham vício em drogas ou álcool. Este é o número oficial, porém, a quantidade de pessoas que passam por este problema e não procuram ajuda é ainda maior.
Foi para superar esses obstáculos que o rap surgiu como uma opção. Para a irmã, o resultado tem sido fantástico. Alguns jovens, comemora a irmã, conseguiram se livrar do vício, e outros a enxergam como um porto seguro a ponto de me ligarem no meio a madrugada para pedir ajuda. “Tem que entrar no mundo deles, ver a realidade, o que eles fazem e como eles vivem. O rap é uma forma para eles se expressarem. Nós usamos a música para resgatá-los e confrontá-los com este mundo vazio que eles vivem”.
Com o histórico de nove anos de uso de crack, Erickson Roberto Nascimento de Santos, de 29 anos, conseguiu mudar a própria vida a partir do trabalho da irmã Inez. Para ele, que hoje trabalha com manutenção de alvenaria, chega a ser difícil descrever o quanto foi beneficiado. “O rap o hip hop ajudam muito. A letra fala de união, envolve muito os jovens e ajuda as crianças a entenderem que a vida com drogas é uma vida ao contrário. O rap tem a dança, e eles [jovens] começam a se envolver na dança e não querem parar. É um trabalho tremendo”, disse Erickson.
Ele conta que tinha preconceito com instituições voltadas para tratamento de dependentes químicos, mas que as consequências do crack fizeram com que ele procurasse ajuda. “Eu estava perdendo o meu casamento, a confiança das pessoas, estava perdendo até o meu trabalho. A irmã Inez confiou em mim, me ajudou, conseguiu uma vaga e eu disse que não iria decepcioná-la”, lembrou. Erickson ficou nove meses em tratamento em uma casa de recuperação em Francisco Beltrão, no sudoeste do Paraná. O espaço foi fechado em 2013.
Com a música “Menor abandonado”, a irmã retrata o sentimento de quem vive nas ruas. “Andando pelas ruas, nesta escuridão, com frio e com fome, e sem ter um pão, sem ninguém para me ajudar nesta solidão, nos caminhos desta vida, sem ter um irmão. Tive toda liberdade pra fazer o que quis, mas confesso a você que eu nunca fui feliz Nunca quis saber de Deus, nem conhecer o céu, nunca imaginei que o mundo fosse tão cruel. O prazer e a maldade foi o que escolhi, nunca conheci o amor, e nem o Senhor, mas agora eu quero conhecer, mostra, por favor, esse amor que vem do céu, seja como for”.
Nem sempre as composições falam diretamente de religião. A Copa do Mundo inspirou a irmã a compor o rap “Mundo é meu Brasil” (veja o vídeo no começo da reportagem). Ao brincar com trechos do hino nacional, a letra fala que todo o homem quer ser livre e amado no país adorado. Também menciona o clamor da população por um país sem racismo e desigualdade. “O grito do meu povo que deseja um mundo novo, é a voz do coração que faz a pátria uma nação tão esperada”, diz trecho da música.
A freira avalia que a sociedade justa, tão desejada, não e fácil de conquistar, se o "tráfico corre e ninguém vê". Além disso, a irmã chama a população. “Eu não posso mais ficar em berço esplêndido deitado, só na tranquilidade, esperando o sol da liberdade. Temos muito o que falar, trabalhar, ajudar”.
Independentemente da mensagem, os shows são sempre muito animados e fazem com que o público entre na batida do hip hop. A irmã tem uma banda e duas outras freiras também cantam e dançam no palco. Cada apresentação exige um período de preparação, já que as irmãs precisam ensaiar as coreografias e planejar todos os momentos do show. A irmã Inez tem ainda outros cinco CD de música sacra gravados.
O papel da sociedade
Em quase 20 anos de vida religiosa, o estalo para passar a desenvolver atividades para jovens dependentes químicos ocorreu ainda quando a irmã Inez morava em Ponta Grossa, na região central do Paraná. Ao sair do convento, ela viu de perto a realidade presente em praticamente todas as cidades do país.
“Eu nunca tinha saído na rua, era uma freira de convento. Foi quando eu me deparei com crianças dormindo em caixas de papelão, expostas à chuva, usando drogas. Era uma realidade que eu não conhecia, fiquei muito tocada, muito emocionada e decidir fazer algo”, lembrou.
Assim que se mudou para Paranaguá, a percepção de abandono destas pessoas permaneceu. “A sociedade não acolhe, tem preconceito, discriminam muito, sendo que poderiam ajudar esses jovens e adolescentes”, disse a irmã.
Ela acredita que a igreja tem tentado ajudar, porém, não consegue. “Eu me deparei com uma realidade muito crítica e sofri bastante por fazer este trabalho. A sociedade não aceitava eu acolher, dar comida, cheguei a ser ameaçada”.
Um dos braços deste trabalho social é a manutenção de uma chácara para abrigar jovens entre 11 e 18 anos em condições de vulnerabilidade social. No local, as atividades têm com base a disciplina, a oração e o trabalho. Os jovens acolhidos também têm acompanhamento psicológico como um auxílio para reverter a dependência química. O espaço, porém, após uma enchente em 2011, precisou ser fechado. Durante estes três anos, a irmã angariou recursos para a reforma.
Ela não esconde a ansiedade pelo momento em que as atividades sejam reestabelecidas. “Se Deus quiser, até o fim deste ano, está tudo pronto. Nós perdemos tudo e para reconstruir ganhamos da Receita Federal material e fizemos bazar, vendemos CD, também teve doação. Agora ganhamos os beliches. O sonho é para que até o final do ano seja a reinauguração”, disse.
A irmã também é a fundadora da Comunidade Milagre Eucarístico, que é um espaço onde moças e rapazes podem passar um tempo com dedicação à vida religiosa e ao assistencialismo. As pessoas que procuram a Comunidade podem ficar o tempo que acharem necessário. A irmã Inez contou que as atividades são desenvolvidas para que os jovens encontrem a própria vocação. A capacidade é para até 30 pessoas, e há ainda uma movimentação mensal de cerca de 10 jovens.
Custos
O CD “A Face da Revolução” custa R$ 15 e pode ser comprado pela internet. O dinheiro arrecadado é direcionado para a manutenção da estrutura dos shows e também utilizado para os projetos que auxiliam dependentes e moradores de rua.
Já com relação aos shows, a irmã Inez explica que o valor cobrado depende da origem do projeto. As propostas com cunho religioso e organizadas por jovens e para jovens têm custo mais baixos do que projetos oriundos da iniciativa privada, por exemplo. No dia 9 de setembro, quando a irmã celebra 20 anos de vida religiosa, haverá uma festa em Paranaguá para os moradores de rua, com almoço e uma celebração religiosa.
Fonte: G1
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