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quinta-feira, julho 31, 2014

"É preciso renovar mais e copiar menos", diz diretor de "Meu Pedacinho"

Luiz Fernando Carvalho dirigiu "Meu Pedacinho de Chão"Na reta final de "Meu Pedacinho de Chão", o diretor da novela, Luiz Fernando Carvalho, avalia que o trabalho mostrou a possibilidade de pensar um velho formato, como a novela, de forma
original.  

Como tantos outros trabalhos seus, "Meu Pedacinho de Chão" fugiu totalmente do óbvio e surpreendeu os espectadores do horário das 18h da Globo. Escrita por Benedito Ruy Barbosa nos anos 70, a novela foi transformada num conto de fadas. Ou, como diz Carvalho, em "uma espécie de sonho".

Nesta entrevista ao UOL, o diretor fala da necessidade de "renovar mais e copiar menos" na televisão. Acha que o modelo de novela está velho e burocratizado. 

Carvalho também fala do seu método de trabalho com os atores ("ou se cria uma nova expressão, um novo ser, ou não faz o menor sentido estarmos ali"), e da alegria que teve de ver como Juliana Paes se reinventou ("tive a alegria de ver nascer uma nova atriz") no seu papel na novela.

UOL - Como você avalia o resultado final de "Meu Pedacinho de Chão"? 
Luiz Fernando Carvalho - Positivamente. Foi uma novela que trouxe várias questões não só aos telespectadores, mas também a nós realizadores de dramaturgia. Evidentemente digo isso pensando desde o modo de se escalar e de se preparar os intérpretes, passando pelo número reduzido de personagens e de episódios, até chegarmos no exercício de uma linguagem narrativa adotada a partir de uma espécie de sonho, uma ideia onírica do que poderia ser uma novela rural lida através de um novo ponto de vista. Este sim, me parece um salto consistente de leitura e interpretação sobre um universo que me soava repetitivo e estagnado.

O que você planejou fazer e não conseguiu?
Meu trabalho é feito de tentativas. Entre elas, ficaram para trás tantos desejos não realizados que não saberia te responder exatamente. Como o desejo de tornar o universo de alguns personagens mais elaborados. Era o caso do Giácomo, por exemplo. Desempenhado de forma brilhante e terna pelo [Antônio] Fagundes, que com seu modo de atuar excitava minha imaginação todos os dias, me fazendo visualizar uma pequena perspectiva, um fragmento que fosse do passado de seu personagem: a falecida mulher, sua origem, a construção de seu pequeno mundo de comerciante, enfim. Mas tudo me escapava. Com um texto já escrito, desejos como esses se tornam impossíveis de serem realizados.

O que te surpreendeu na novela?
Não digo que tenha me surpreendido propriamente, mas o resultado da busca por uma ressignificação do texto foi algo surpreendente para todos nós. Era algo muito trabalhado por mim e por toda a minha equipe. Era um desafio. Enxerguei este texto do Benedito como um clássico, com mil possibilidades de leitura. Assim como um Shakespeare pode e deve ser encenado de várias formas – do histórico ao contemporâneo – e quanto maior a quantidade de leituras mais reafirmada será sua qualidade. Assim foi. Dos westenrs aos animês orientais, tudo me vinha na cabeça. Das operetas de circo-teatro aos antigos melodramas de rádio.

"Meu Pedacinho de Chão" é uma história onde vários gêneros se cruzam: drama, comédia, aventura, quadrinhos, fábula. Me pareceu necessário cruzar também as linguagens, criando uma atmosfera híbrida, contemporânea, capaz de atender às mais variadas modulações da minha interpretação. Termos alcançado, com alguma delicadeza, um equilíbrio entre tantas coordenadas, sim, nos surpreendeu a todos. 

Muita gente avaliou "Meu Pedacinho de Chão" como uma novela infantil. Era uma novela para crianças?
Ao ler o texto, percebi o quanto o autor trabalhava com elementos dramáticos muito simples, quase naifs, mas muito míticos também, aproximando os personagens de arquétipos bem definidos. Propus então que o universo que abraçava a história fosse atemporal. Quando disse isso, claro, uma quantidade de impulsos e visões começaram a surgir dentro de mim. 

Atemporal é um conjunto indefinido de afetos, tempos e espaços, mas que, necessariamente, precisam constituir uma unidade estética. Pensei imediatamente na questão da memória, que é uma das chaves da obra do Benedito, mas pensei sem o compromisso da representação histórica, de datas, etc. – se assim fosse, estaríamos realizando simplesmente uma novela de época. Então o atemporal transpassa todos os tempos, ele reúne impressões e formas do passado, do presente e do futuro. O atemporal é a própria imaginação em si. 

Mas, no caso de "Meu Pedacinho", há um ingrediente especial: a infância! Serelepe é como uma testemunha da resistência do lirismo, da força da infância. Isso implica dizer que a atmosfera é imaginada pelo olhar lúdico de um menino, com um frescor de luzes e cores, mas que, necessariamente, não torna a narrativa infantil. Serelepe também não é uma criança que fala e se comporta como um adulto. Ele é uma faísca inexplicável! Um herói de fábula que contamina todo o microcosmo que sua luneta-olho alcança. Tudo aquilo seria um grande brinquedo do Lepe. Talvez esta seja até um proposta complexa, mas nunca infantilizada. É uma tomada de posição. Estou reivindicando o papel da infância dentro do imaginário televisivo, a meu ver bastante abandonado pela dramaturgia atual. 

Chamou muito a atenção o desempenho de alguns atores conhecidos, como Juliana Paes, Rodrigo Lombardi, Osmar Prado e Antonio Fagundes. Como você conseguiu extrair desempenhos tão diferentes destes atores?
A preparação dos atores é a fase a qual mais me dedico dentre todas as fases de um trabalho. Cada projeto exige um conjunto de técnicas e procedimentos que apresento aos atores na sala de ensaio, visando sempre a um ato de coragem – ou libertação, se preferir. Como diz o poeta: "Se expressar é uma questão de vida ou morte." Dentro dos ensaios, ou se cria uma nova expressão, um novo ser, ou não faz o menor sentido estarmos ali.  

Sempre pensei no Osmar para o Êpa. Foi uma visão que me ocorreu durante a primeira leitura. Não trago fórmulas para montar um elenco, mas os sentimentos devem guiar tudo, como uma enorme saudade, por exemplo. Este é o caso do Fagundes: saudade! Fazia tempo não trabalhávamos juntos, mas, por outro lado, não gostaria de repetir algo que fizemos anteriormente, por isso lhe ofereci o Giácomo, uma figura de brinquedo. Saudade é novamente a palavra capaz de traduzir Irandhir Santos, distante desde "A Pedra do Reino". Seu Zelão foi encantador. 

Mas, além de tudo e de todos, tive a grata alegria de fazer nascer uma nova atriz: Juliana Paes. Cheia de coragem para se livrar de antigos modelos, Juliana encarnou uma Madame Êpa de opereta! Mostrando não só talento, mas disciplina e dedicação para se superar. A atuação de Juliana revelou-se repleta de nuances, emocionou e fez sorrir a um só golpe. O mesmo devo dizer do Rodrigo Lombardi, que se despojou do estigma de galã e, renascido como artista criador, se aventurou com riquezas de detalhes na criação de seu Pedro Falcão. 

O encontro com estes múltiplos talentos, provenientes dos mais variados pontos do país, foi o que deu ao meu dia a dia uma sensação de unidade artística e cumplicidade espiritual. Termos tido coragem para imaginar um mundo novo foi o melhor daqueles dias! E esta coragem, buscada desde a sala de ensaio, cada ator a levará eternamente consigo. Se tivesse que resumir esta experiência com os atores de "Meu Pedacinho", diria que estávamos diante de um grande divertimento. É assim que todos estamos nos sentindo. É assim que nos despedimos.

Em termos de audiência, a novela ficou abaixo da média do horário, com números um pouco inferiores até a "Lado a Lado" e "Joia Rara", as que tiveram pior Ibope. Como você vê esses números?
Em um ano atípico, cheio de eventos, estreando em meio a feriados e atravessando uma Copa do Mundo, sinceramente, minha avaliação só pode ser positiva. Ficarmos dentro da média de novelas apresentadas há dois anos me parece bem razoável.

Dizem que o mercado de atores está saturado e as novelas repetem sempre os mesmos. "Meu Pedacinho..." mostrou vários rostos novos ou pouco usados na TV, todos muito talentosos. Qual é o segredo?
Não há segredo. É preciso virar as costas para o litoral, repleto de consagrações imediatas, e avistar um mundo de talentos que é o nosso país. É preciso também repensar o modelo de dramaturgia com urgência. Não sou um especialista, mas o modelo soa velho e burocratizado. Há novelas com mais de cem personagens sem que de fato esta quantidade se faça necessária dramaturgicamente. Há um desperdício que se tornou uma regra faminta, capaz de devorar os melhores talentos já estabelecidos.

Some-se a isso, uma real fragilidade na formação de novos atores, autores e diretores. Em ultima instância, seriam os diretores os responsáveis por analisar e refletir de forma crítica os textos e as escalações. Infelizmente falta reflexão crítica. É preciso renovar mais e copiar menos, levantando os olhos do próprio umbigo e avistando o tal mundo. Pouco importa um diretor ou autor que foi colaborador por décadas, praticamente um funcionário público, ele repetirá formulas e procedimentos arcaicos mesmo sendo chamado de "novo". 

"Esperança", de 2002, havia sido a sua última novela. Como foi voltar a fazer uma novela? Planeja outras?
Escolhi dirigir poucas novelas para me colocar diante delas como um amador.  Esse frescor é fundamental para mim. Por isso "Meu Pedacinho de Chão" não se trata de mais uma novela, nem mesmo considero este momento como simplesmente minha volta às novelas. Não estou voltando a nada, pois não considero ter abandonado coisa alguma. O que existe é a continuidade de um exercício de narrador que não termina nunca e, especialmente em relação às novelas, ainda pouco explorado por mim. Tenho ainda curiosidades em relação ao gênero e por isso mesmo considero um desafio revisitá-lo. Sou um aprendiz. Não trago regras ou certezas de como deve ser feita a coisa, trago apenas amor pela história e os personagens. Repito: sou um amador.

Novela é um gênero com futuro na televisão? Esse formato mais curto, com 100 capítulos, é uma solução?
A novela não morrerá nunca. Muda-se o suporte, o veículo, e a novelinha estará lá! Ela é arquetípica. Faz parte do inconsciente coletivo ouvir histórias, ler, contar. Não há muita diferença entre estes modos. A imaginação trabalha diferentemente, tudo bem, mas as emoções trafegam de forma parecida, se comunicam, estão ali, ligadas. Estaremos sempre abertos à uma boa história. O que precisamos refletir é uma questão de forma –  sempre a questão mais delicada. Nos dias de hoje, debaixo dessa saraivada de imagens e conteúdos que consumimos, me parece inadmissível acreditarmos que a narrativa e a linguagem não precisam avançar em busca de uma modulação mais criativa.

Reprodução Cidade News Itaú via Uol

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