O caminho que levou o camaronês Tommy Germain, de 38 anos, a virar ator no Brasil é tão sofrido que ele diz que não gosta nem de lembrar. Há cerca de 15 anos,
deixou seu país rumo a África do Sul, mas nunca chegou ao destino. No meio do caminho, ficou preso na Angola, que estava em guerra civil. Lá, trabalhou por quatro anos em minas de diamante para sobreviver. Viu pessoas morrerem, quase foi morto por engano e sua família chegou a achar que ele havia morrido. Em 2005, após o fim da guerra na Angola, veio ao Brasil e quis fazer teatro após assistir novelas na TV. Vive em São Paulo há quase dez anos e hoje já fez peças, filmes e uma minissérie da Globo.
“São coisas muito fortes. Não gosto nem de lembrar, porque me faz chorar, e eu não gosto de chorar”, disse. Ele afirmou que deixou Camarões porque havia poucas oportunidades. “Lá você se forma e continua desempregado. Por isso, muitos africanos fogem, saem do país. Muita gente se arrisca para fugir e ter uma vida melhor. Entra no navio, nem sabe onde está indo, se esconde no porão. Quer sair.”
Nesta segunda-feira (23), a seleção do Brasil enfrenta a de Camarões pela Copa do Mundo. O G1 encontrou histórias de camaroneses que imigraram para o Brasil e mudaram de vida, fazendo algo que não imaginavam em Camarões: Tommy, que fez cursos de teatro e virou ator, e a comerciante Melanito Biyouha, de 43 anos, que abriu um restaurante de comida africana, o Biyou'Z, no centro de São Paulo. “Para mim criar espaço no Brasil eu tive que inventar uma coisa que não existe (...). Estou realizando um sonho”, afirmou Melanito - veja depoimentos no vídeo acima.
Apesar de terem realizado sonhos no Brasil, contudo, os dois afirmaram que vão torcer para Camarões. “Claro que tem que dar Camarões, de qualquer jeito. Eu não vou te falar para te agradar, a minha alma é de Camarões. Estou bem acolhida no Brasil, realizando um sonho no Brasil, mas a minha raiz vem bem de longe, não tem como”, disse Melanito.
“A gente torce para o Brasil, mas Camarões vêm primeiro. Aí, se Camarões falhar, a gente pula para o Brasil, porque é nossa segunda casa, mas a casa mãe é Camarões, não tem jeito, somos camaronenses”, declarou Tommy.
Trajetória de Tommy
Nascido na cidade Limbe, no Sudoeste de Camarões, Tommy formou-se em letras (francês e inglês) na capital do país, Yaoundé. Filho de um funcionário público e uma dona de casa, ele afirmou que os nove irmãos tiveram uma infância tranquila.
“Meu sonho quando eu estava na faculdade era terminar os estudos ir para a Inglaterra ou EUA.” Após se formar, voltou para a sua cidade para trabalhar em uma rádio. Foi quando recebeu o convite de um amigo para irem juntos à África do Sul.
“Ele me falou, ‘meu irmão, eu conheço o caminho para sair de Camarões até Johanesburgo’. Naquela época o Nelson Mandela tinha saído da cadeia e o mundo estava dando valor para os negros na África do Sul. Eu descobri um monte de faculdades que seriam boas para mim lá e falei ‘vamos’”.
Juntou aproximadamente US$ 1 mil de ajuda que recebeu de parentes, fez um visto para a Namíbia. “Era o país que fica mais próximo e tinha ‘visa free’ (visto livre). Pegar o visto para a África do Sul era complicado, exigia uma série de documentos que eu não tinha. Aí, dois dias depois, a gente pegou a estrada rumo Johanesburgo”.A ideia era eles chegaram no Congo e pegaram um trem até Johanesburgo. “Quando a gente chegou no Congo, tinha guerra no Congo. Eu vi aquilo eu falei 'Jesus Christ', é pior que em Camarões, é melhor voltar para Camarões. Muito pior”, relatou. Ele não conseguia nem continuar o caminho para Johanesburgo nem voltar para Camarões.
A alternativa foi seguir rumo a Angola. Como os caminhos estavam barrados por conta da guerra civil, precisaram atravessar um rio de madrugada. “Tinha crocodilo na água e respirar era pecado, porque o crocodilo podia morder. A gente ficou ‘paralisado’ até atravessar. Eu nunca vivi uma coisa assim, eu tremia”, relatou.
Ao chegarem na Angola, também encontraram o país em guerra. “Eu nunca vi tantas armas assim, com militares e até os civis. (...) Tinha essas pessoas que pedem dinheiro, se você não tem, eles obrigam você a entrar na rebelião. Aí você vai trabalhar em Lunda, no norte de Angola, onde eles fazem exportação de diamante, é como trabalho escravo”, relatou.
'Não tinha mais como voltar'
Para chegar na capital, Luanda, eles pegaram um voo. Ao chegarem no aeroporto, contou que seu amigo foi pego e repatriado. Ele disse que ficou sozinho e sem dinheiro.
“Eu não tinha mais como voltar, quando você entra não tem como sair. Para entrar é tão difícil, imagina para sair. Eles acham que você está saindo com diamante, tem muita gente que morreu só para sair de lá, eles cortam a barriga para ver o intestino se tem diamante, então todo mundo tem medo de sair”, relatou.
Com isso, disse que acabou indo trabalhar nas minas de diamante em Lunda. Morou em pensões e chegou a dormir na rua. “Lá não tem essa de achar lugar para morar. Você pode dormir em qualquer lugar, você foi para procurar dinheiro não para procurar onde dormir.”
“Eu fiquei muito forte através dessas viagens. Eu era bem inocente quando saí de Camarões, amadureci muito, eu quase já não tinha sentimento em ver alguém do meu lado chorando, porque eu via tanta coisa que a vida mesmo não valia nada. Na Angola era muito normal alguém morrer do seu lado naquela época, ninguém ligava, ‘morreu, morreu’, vai jogar lá no buraco, na vala comum”, disse.
Entre a vida e a morte
Um pouco antes de vir para o Brasil disse que ficou entre a vida e a morte porque o confundiram com pessoas que supostamente haviam roubado diamantes.
“Eles atiravam na gente, só que não para matar, para a gente se assustar e falar onde estava o diamante. Mas eu não tinha, o diamante que eu tinha não era o deles”, disse Tommy, explicando que depois um general chegou, percebeu que era um mal entendido o soltou. “Cara, que suspiro. Eu já estava fazendo a minha oração para me despedir do mundo. O meu amigo que estava comigo ele chorou até as lágrimas não saírem mais.”
Ele disse que no dia seguinte pegou o voo para o Brasil. Explicou que já planejava vir para o país porque colegas moravam em São Paulo. “Cheguei em são Paulo e fui direto para o hospital para tratamento.”
Foi no Brasil que ele disse que conseguiu ligar pela primeira vez para sua família em Camarões e avisar que estava vivo. De acordo com ele, foi difícil fazer todos acreditarem que era ele, pois já estava tido como morto na família. Na primeira ligação para sua mãe, ela chorou e desmaiou, disse. “Eles me explicaram que já tinham feito missa porque achavam que eu estava morto.”
Em 2012, voltou para Camarões por um mês e reviu a família. Disse que seu pai e um irmão morreram e ele não sabia.
Novelas
A ideia de fazer teatro veio logo depois que ele chegou ao Brasil. “Cheguei aqui que eu descobri as novelas que passavam no meu pais quando eu era criança . Eu lembrei de ‘Escrava Isaura’, e eu falei, ‘Jesus, man, eu vou fazer teatro aqui.'”
Trabalhou como vendedor (conta que comprava mercadorias no Paraguai e revendia no Centro de São Paulo) e iniciou curso de teatro. Aos poucos, começou a atuar em peças e conseguiu bolsas de estudos. Disse que foi muito difícil no começo e chegou a pedir comida e dormir em pensões de R$ 10 por noite. Aos poucos, disse que as coisas foram dando certo e, em 2013, ele fez um curso de cinema nos Estados Unidos - "eu queria muito e tinha me preparado para isso."
Entre as peças que já participou cita “Boca de Ouro”, de Nelson Rodrigues, “Bodas de Sangue”, de Federico García Lorca, e uma peça chamara “Nossa Cidade”, de Thornton Wilder. “Agora em cinema tem muita coisa. Já fiz seriados da HBO, da GNT e agora o último seriado que participei foi a série 'O Caçador', da Globo", contou.
“Eu sempre fui assim, de ir atrás do meu sonho, tentar fazer o que eu gosto. Eu não me sinto à vontade fazendo uma coisa que eu não gosto. Eu posso até tentar fazer, mas ao longo do tempo eu vou parar. Então é importante ter foco. Porque senão você pode até ganhar dinheiro, mas não está feliz.”
Restaurante afro em SP
Já Melanito nasceu na capital Yaoundé. É a terceira filha de sete irmãos. Viveu em sua cidade até aproximadamente os 30 anos, e depois saiu da casa da família para trabalhar em um banco na cidade de Duala.
Veio ao Brasil em 2003, inicialmente a passeio, a convite de parentes que vivem em Brasil, e nunca mais foi embora. “Tive a oportunidade de vir conhecer o Brasil e fiquei aqui.”
A ideia de abrir o restaurante de comida africana surgiu ao perceber que não existia nada parecido em São Paulo. Formada em marketing, disse que sempre gostei de fazer comércio, negócios e oferecer produtos aos clientes. Revelou, ainda, que aprendeu a cozinhar desde cedo com sua mãe a avó.
“Acabei descobrindo, quando eu cheguei em São Paulo, que não tinha uma representação de comida africana. Pensei, se eu vou ficar tenho que criar uma coisa que não exista no mercado brasileiro e que vai ser uma representação própria e típica da nossa cultura”.
O restaurante foi aberto em 2008, no centro da capital paulista, onde percebeu que havia uma grande aglomeração de africanos. Atualmente, contudo, afirma que tem conseguido atingir seu objetivo de atender também o público brasileiro. Faz pratos de diversos países além de Camarões, como Senegal, Congo, Angola, Nigéria, Cabo Verde e Costa do Marfim.
“Hoje estamos realizando o nosso sonho, ainda não estamos no fim, mas nosso prazer de poder ter como clientela o povo brasileiro, que está conhecendo nossos pratos, aprendendo a conhecer nossos pratos. É uma bela mistura que era realmente nosso projeto de poder juntar as duas culturas”, diz.
Reprodução Cidade News Itaú via G1
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