“Deve-se confiar nos pobres, eles fazem boas escolhas”, disse a uma plateia de petistas de primeiro escalão o americano David de Ferranti, na época vice-presidente do Banco Mundial para a América Latina.
A época era o ano de 2003, mais precisamente no dia 31 de março, quando o governo Luiz Inácio Lula da Silva completava seus primeiros três meses e debatia em seminário o seu mais importante programa social.
Um tal Fome Zero.
Sem muita sutileza, Ferranti atacava a proposta que havia encabeçado a campanha de Lula ao Planalto, cuja grande inovação seria a distribuição de cartões a serem utilizados obrigatoriamente na compra de comida.
A receita alternativa do economista era o que havia de mais consensual na agenda neoliberal de Washington: unificação de ações de combate à pobreza em um programa de renda focado apenas nos segmentos mais miseráveis da poupação, no qual os beneficiários têm liberdade para usar o dinheiro desde que se comprometam com contrapartidas como a frequência escolar dos filhos.
Poucos meses depois surgia o Bolsa Família, cujo primeiro decênio de vida começa a ser comemorado pelos petistas.
É óbvio que Ferranti não havia feito uma mera contribuição pessoal ao debate. Sua tese contava com aliados no Ministério da Fazenda de Antonio Palocci e seu secretário de Política Econômica, Marcos Lisboa.
Lisboa vinha do Iets (Instituto de Estudos de Trabalho e Sociedade), entidade que tinha o Banco Mundial entre seus financiadores, e na campanha eleitoral havia coordenado um documento conhecido como a “Agenda Perdida”. O texto pregava reformas liberais na economia e ações sociais focalizadas _até então, a política social brasileira era composta basicamente por programas universais, ou seja, disponíveis para todos.
As ideias provocavam reações veementes no PT. Em um seminário no mês de abril, Guido Mantega, então ministro do Planejamento, chamou a “Agenda Perdida” de “agenda fajuta”. Dias antes, em entrevista publicada pela Folha, a economista de maior renome no partido, Maria da Conceição Tavares, havia chamado Lisboa de “semi-analfabeto” e o Iets de “grupo de débeis mentais do Rio de Janeiro”.
Um documento publicado em 2007 pelo Banco Mundial tratou da paternidade do Bolsa Família. Relata-se um encontro sobre o assunto, naquele mesmo março de 2003, entre Lula, o presidente do organismo, James Wolfensohn, e Santiago Levy, formulador de um programa de combate à pobreza no México. Dali em diante, o banco prestou assistência técnica na elaboração do programa brasileiro.
Como o texto aponta, porém, as origens da ideia são mais antigas no debate e na prática administrativa do país. O senador Eduardo Suplicy (PT-SP), por exemplo, já defendia obsessivamente havia mais de uma década um programa de renda mínima.
Em 1995, quase simultaneamente, o governo do Distrito Federal, comandado pelo PT, e a Prefeitura de Campinas, do PSDB, lançavam iniciativas pioneiras, que seriam posteriormente copiadas ou adaptadas em uma série de municípios.
Em 2001, FHC criou o Bolsa Escola federal, repetindo o nome adotado no DF, e o Bolsa Alimentação. Até o final de seu mandato, outras ações de menor montante, como o Auxílio-Gás, seriam inauguradas.
Tucanos costumam reivindicar uma parcela majoritária do DNA do Bolsa Família, que, segundo sua argumentação, seria mera unificação de verbas já existentes. Mas foi a administração petista que deu ao programa uma escala antes inimaginável: em 2002, o Bolsa Escola e o Bolsa Alimentação gastavam juntos R$ 1,7 bilhão, ou R$ 3,2 bilhões em valores atualizados, enquanto o Bolsa Família desembolsará R$ 21,4 bilhões neste ano.
Reprodução Cidade News Itaú
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