segunda-feira, maio 06, 2013

'Salvou o rosto', diz sobrevivente da boate Kiss que usou curativo inovador


Ainda no hospital, Bruno recebe visita de toda a família (Foto: Bruno Grethe/Arquivo pessoal)

Era dia 3 de fevereiro de 2013 quando o estudante Bruno Rupollo Grethe, de 18 anos, acordou em um quarto de hospital sem saber como chegou lá. A última lembrança que tinha era de um incêndio na festa Agromerados, na boate Kiss, em Santa Maria, na Região Central do Rio Grande do Sul. Ao acordar de um coma que não sabia quanto tempo durou, o jovem percebeu que havia algo estranho em seu rosto, coberto por um curativo.
Proibido de se olhar no espelho, Bruno sentiu por três dias uma angústia que chegou ao fim quando percebeu que havia sofrido uma queimadura em metade da face, mas que a cicatriz havia desaparecido graças a um curativo inovador desenvolvido a partir de células do intestino de porcos. Naquela altura, ainda não sabia que a tragédia de 27 de janeiro havia causado 241 mortes e deixado mais de 600 pessoas feridas como ele.
Bruno teve 8% do corpo queimado no incêndio. As marcas no braço, em parte das costas, no pescoço e em uma orelha não o incomodam tanto. “Não tenho nada para reclamar. Se o rosto tivesse ficado como estava o meu braço seria outra coisa. O tratamento salvou o meu rosto. Para as costas e o braço não dou muita bola, não ligo muito para estética. Mas rosto é o cartão de visitas”, disse o jovem ao G1.

Bruno mostra recuperação do rosto e dos braços após queimaduras (Foto: Bruno Grethe/Arquivo Pessoal)Já em casa, no início de abril, Bruno mostra
recuperação do rosto e dos braços
(Foto: Bruno Grethe/Arquivo Pessoal)
Responsável pela Unidade de Queimados do Hospital Cristo Redentor, em Porto Alegre, a cirurgiã plástica Maria da Graça Figueira Costa explica que o tratamento a que a Bruno se refere é a aplicação de uma membrana sintética para facilitar a cicatrização. Depois da recuperação, o material foi retirado. “Ele tinha queimaduras de segundo grau na face. Esse curativo é uma membrana que acelera a cicatrização, mas não é um substitutivo (da pele), pois ele não precisava de um substitutivo”, explicou a médica.
As características do ferimento também facilitaram para que o tratamento fosse um sucesso. “Ficou muito boa a pele dele. Queimaduras de segundo grau têm características de recuperar. A princípio há uma mudança de coloração, mas que com o tempo vai apagando e ficando cada vez melhor”, explicou.


O curativo denominado “Oasis” foi doado depois da tragédia aos hospitais de Clínicas e Cristo Redentor, em Porto Alegre, pela empresa importadora Maximedical (confira no vídeo ao lado como funciona o produto). Na época, houve um mutirão de doação de pele e de sangue para ajudar os feridos. Voltado especificamente para cicatrizar queimaduras de segundo grau sem deixar marcas, o produto é elaborado a partir de células extraídas do intestino delgado do porco, e tecnicamente denominado “matriz extracelular”.
“Do intestino do suíno, são removidas células que contêm diversas substâncias, como fatores de crescimento, colágenos e proteínas. As células humanas vão se integrando através destas substâncias presentes na membrana, até gerar uma cicatrização perfeita, sem marcas”, explica a enfermeira Fernanda Rafael, gerente do produto na importadora.
As principais substâncias presentes na matriz são o colágeno e a elastina, responsáveis pela elasticidade da pele, e proteínas e fatores de crescimento, que proporcionam o desenvolvimento da pele. “Ela faz com que a cicatriz se reorganize, e por isso o rosto do Bruno ficou perfeito”, explicou Fernanda.

Últimas lembranças antes de acordar no hospital

Fachada da boate Kiss, em Santa Maria (Foto: Tatiana Lopes/G1)Incêndio causou a morte de 241 pessoas 
(Foto: Tatiana Lopes/G1)
Bruno acreditava que haviam se passado 10 dias do incêndio quando teve a sedação reduzida e acordou. Não sabia o quanto teve sorte por ter decidido circular pela boate e estar em uma das duas copas, a que ficava mais perto da saída. Nem viu o fogo que o queimou, mas percebeu que havia fumaça e sentiu tontura ao respirar. “Tranquei a respiração e fui até a porta. Quando cheguei, tive de dar uma respirada e acabei desmaiando. Fui acordar na UTI”, contou.
O estudante não sentiu a angústia da família ao encontrá-lo na Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) de Santa Maria, na madrugada da tragédia, mas sabe que não foi fácil para a mãe Dirlene Grethe. “Eu estava tão inchado que ela só me reconheceu pela sobrancelha”, conta.
O estudante também não percebeu que havia sido transferido para o Hospital de Caridade de Santa Maria, onde os médicos recomendaram à família que o levassem para Porto Alegre. Ainda foi preciso esperar que a pressão se estabilizasse para que ele pudesse embarcar no avião. Depois chegou à capital gaúcha, foi internado e, enfim, acordou.
“Quando eu estava na UTI, senti uma coisinha no rosto, mas não podia ver. Quando subi para a ala dos queimados, todos os dias a enfermeira umidecia o curativo. Depois de três dias o rosto estava igual, sem nenhuma cicatriz. Ficou perfeito, mas no terceiro dia ainda estava inchado. Depois de um mês e pouco desinchou, mas ainda tenho de cuidar, passar protetor”, explicou o menino.
Mãe escondia extensão da tragédia durante recuperação
Dias depois do alívio, no entanto, Bruno sentiu a maior dor que o incêndio provocaria. À medida que se recuperava, passou a pedir mais informações sobre a tragédia. O incêndio teve consequências mais trágicas do que imaginava. Entre as 241 vítimas, estavam 11 amigos e outras 20 pessoas que conhecia. O jovem é estudante de agronomia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), o mesmo curso dos organizadores do evento.
“Houve uma manhã em que eu acordei e chamei a enfermeira. Ela falou 'tiveste sorte e tens de agradecer, morreram umas 200 pessoas'. Na hora é como se eu não quisesse escutar, não entendesse direito. Pensei: 'se morreram 200 pessoas, nenhum amigo meu que estava lá sobreviveu'”, contou.

Bruno em uma festa com amigos da agronomia da UFSM, curso que perdeu mais de 20 alunos na tragédia (Foto: Bruno Grethe/Arquivo pessoal)Bruno em uma festa duas semanas após voltar às
aulas (Foto: Bruno Grethe/Arquivo pessoal)
A volta às aulas não foi fácil para Bruno. O mais difícil para ele é olhar para o fundo da sala de aula e não ver os amigos. “Faltam os sorrisos no fundão”, lamenta. Para superar o trauma, o grupo de alunos se uniu. Uma boa oportunidade de integração foi o trote do novo semestre, que na universidade não é feito com tintas e líquidos malcheirosos, mas com um churrasco com os calouros. A emoção marcou o evento, visto por Bruno como o momento em que os alunos começaram a se reerguer após o trauma.
“Não adianta, a gente passa a semana inteira pensando, deita e chora um pouco. Quando chegou a tardinha, um puxou o choro, e foi geral. Todos choraram. Vemos amigos sofrendo, mas tem o lado bom. Um ajuda o outro, nos damos força. O pessoal ficou melhor depois dali”, contou.
Os colegas de Bruno começaram a jantar juntos. A união fortaleceu a turma, que aos poucos vai retomando a rotina. Com o rosto curado e marcas de queimaduras em outras partes do corpo, ele ainda realiza fisioterapia e conta com o apoio da mãe para recuperar completamente o movimento do braço esquerdo. Sempre com um sorriso no rosto.
“A vida é feita de momentos, e eu prefiro estar sorrindo na maioria deles”, conclui.

Reprodução Cidade News Itaú

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