O médico mossoroense e cirurgião de tórax Jeancarlo Fernandes Cavalcante, 41 anos, assumiu a presidência do Conselho Regional de Medicina (Cremern) em 2011 e segue seu mandato até 2013. É o mais jovem presidente desse tipo de conselho no Brasil. Casado, pai de dois filhos, tem mestrado e doutorado em Ciências da Saúde. Também é conselheiro federal suplente do Conselho Federal de Medicina (CFM) e professor do Departamento de Medicina Integrada da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (DMI-UFRN).
Jeancarlo é gestor de uma entidade forte. O Cremern tem 6.796 médicos inscritos e habilitados para trabalhar em todo o Estado. Desses, 4.600 são ativos, ou seja, exercem a medicina regularmente. Como gestor de uma entidade forte, as opiniões do jovem médico refletem se não o todo, parte do pensamento da classe médica. Pois bem, a julgar pela entrevista concedida pelo presidente do Cremern a O Poti/Diário de Natal, a saúde pública precisa de tratamento. E urgente, de um pronto-socorro. No Rio Grande do Norte a situação é de "caos", como classificou Jeancarlo.
Enquanto entidade de classe, o Cremern fiscaliza o exercício da profissão, mas sempre se manifesta sobre a situação física e estrutural das unidades de saúde, hospitais, postos de saúde. Enfim, locais onde os médicos atuam. Qual a situação atual da saúde pública no Estado?
Apesar do CRM ser um órgão regulador e fiscalizador da profissão, muitas vezes essas competências interagem. A falta de condições em um posto de saúde acaba resultando em um mau atendimento médico. Se o médico não tem condições de fazer uma radiografia ou de solicitar exames, consequentemente o atendimento ao paciente vai ficar prejudicado. Como a sociedade cobra de maneira devida uma resposta satisfatória do serviço médico, o CRM atua nesse sentido. Dar para o médico condições para que ele possa fazer uma boa medicina, e não possa comprometer o exercício de sua profissão. Quanto ao cenário atual da saúde pública é caótico.
A saúde é subfinanciada. O Sistema Único de Saúde (SUS) é subfinanciado. A quantidade de dinheiro que o Brasil gasta por habitante é muito inferior ao ideal. Isso leva à carência de tudo, desde medicamentos até exames necessários à prática de uma boa medicina. Com isso os grandes hospitais ficam sobrecarregados. A rede básica não funciona. Um paciente com forte dor de cabeça deveria ser atendido inicialmente na unidade de saúde de seu bairro. Se fosse detectado um caso mais grave, aí sim, levado a uma unidade de grande porte, como os hospitais Walfredo Gurgel, Santa Catarina ou Onofre Lopes. Como a rede básica não funciona, é comum paciente até com uma dor de barriga procurar o Walfredo Gurgel. Se o posto de saúde do bairro dele não funciona, ele vai procurar um hospital. Pela falha na rede básica os hospitais ficam sobrecarregados, com pacientes nos corredores e toda a situação que a população conhece.
Ao Cremern preocupa mais a rede básica de saúde, de atribuição do município, ou o atendimento de média e alta complexidade, sob responsabilidade do Governo do Estado?
Nospreocupamos com ambos os atendimentos, mas o funcionamento é como uma pirâmide. A maior parte dos pacientes é atendida na rede básica. Se você consegue uma boa rede básica de saúde, também consegue atender a base da pirâmide, ou seja, um número maior de pacientes. Por isso é importante a rede básica. Um hospital terciário recebe pacientes mais graves, mas em menor número. Por este motivo acredito que a rede básica deveria estar bem estruturada para não sobrecarregar a rede terciária.
O avanço da dengue nas grandes cidades é um indício de que a rede básica não funciona a contento, tendo em vista que os postos de saúde não atendem a grande demanda de pessoas com a doença?
A dengue é um exemplo. Com o aumento de pacientes, eles procuram as unidades de saúde. Em muitas não tem médico. Quando têm médicos não tem exames. Quando tem exames não tem medicamentos. Fica sempre ou quase sempre um atendimento incompleto. Essas são as deficiências da rede básica de saúde.
O SUS representa um avanço no que se refere à centralização e universalização do atendimento de saúde pública. De que forma o senhor observa o sistema hoje, 24 anos após sua criação?
O SUS é o maior sistema de inclusão social de saúde pública do mundo. É importante que se diga isso. Ele foi criado e precisa ser melhor financiado. Tratarmos melhor o SUS no que diz respeito ao financiamento. Equipar melhor os hospitais, equipar os postos de saúde, colocar médicos nas cidades do interior, criar políticas de estímulo para fixá-los no interior. O SUS precisa ser melhor trabalhado nesse sentido. O sistema é universal e gratuito para todos. Como é um sistema de grande inclusão social, falta ao SUS um financiamento devido.
O senhor, então, é favorável à criação de um novo imposto para a saúde, que poderia complementar esse financiamento?
Não. Sou a favor da otimização da distribuição de verbas. Não se pode cortar verbas da saúde nem da educação, como houve recentemente [pelo Governo Federal]. Sou a favor da racionalização do dinheiro e da distribuição por áreas prioritárias: saúde e educação. Uma coisa depende da outra. Isso não ocorre nem no nosso país, nem no nosso Estado nem na nossa cidade.
E quanto à rede privada e os planos de saúde, em que as pessoas pagam por atendimento? Não contradiz o SUS?
Não. Se a saúde suplementar quebrar no Brasil, o SUS vai ficar mais sobrecarregado. Vai haver um maior número de pessoas que hoje são atendidas em hospitais particulares e planos de saúde na rede pública. O governo deve ter políticas específicas para a saúde suplementar e para o SUS. Não é interessante para o governo que a saúde suplementar acabe.
Ainda sobre o SUS, existem ilhas de excelência. Um exemplo é o tratamento de soropositivos no país. Mas o que ainda é necessário para que se parta da teoria de um sistema universalizado para um bom serviço de saúde? Ou seja, que a população veja o SUS como seu plano de saúde, o melhor plano?
O SUS é o maior sistema público de saúde do mundo. Precisa ser o melhor. O Brasil tem muitos avanços. O tratamento da AIDS e o acesso amedicamentos gratuitos na Farmácia Popular são bons exemplos, ou seja, melhoraram a saúde do brasileiro. O que o SUS precisa realmente para exercer o seu papel na plenitude é mais dinheiro. Que o orçamento direcione mais dinheiro para o SUS. Recentemente tivemos a aprovação da Emenda 29, que vincula constitucionalmente as verbas que vão para o SUS. Essa emenda ajuda, mas ainda não é suficiente. Foi um avanço, mas ainda é preciso mais financiamento. Basta ver em quase todas as unidades de saúde. A maioria está sucateada e carente de medicamentos. Falta investimentos.
Nos últimos 20 anos, a medicina brasileira e também a mundial passaram por grandes avanços, grandes conquistas. Um exemplo foi a erradicação de doenças, como poliomielite ou paralisia infantil e exames sofisticados. O poder público não acompanha esse avanço da medicina?
As novas tecnologias em medicina, as coisas que surgem a cada ano, tem que passar pelo crivo da razão, ou seja, se há evidências científicas de que aquilo funciona. O SUS, nesse sentido, cumpre o seu papel. Hoje você consegue fazer quimioterapia, radioterapia, exames de alta complexidade desenvolvidos pela medicina moderna através do SUS, sem custo para os pacientes. O grande problema é que a demanda é maior do que a oferta. Isso gera insatisfação e, consequentemente, muitas pessoas ficam sem ser atendidas. Um exemplo são as tomografias. Cada município tem uma cota de 20 tomografias por mês. Ocorre que, hipoteticamente, um município pode precisar em determinado mês de 50 tomografias. Trinta vão deixar de ser atendidos. Tem que aumentar a oferta para atender todo mundo.
O Cremern é ouvido quando se pensa em políticas públicas aqui no Estado?
Não, mas deveria, sim. Não só o Cremern, mas também o Sindicato dos Médicos (Sindmed) e a Associação Médica. São entes importantes na formação de políticas de saúde pública.
Como o senhor avalia a gestão da política estadual de saúde? Refiro-me especificamente à Sesap.
O Dr. Domício [Arruda, secretário estadual de saúde] está se esforçando muitopara fazer um bom trabalho na saúde. Desconheço maiores detalhes da administração, mas acho que se dessem maiores condições ele faria mais. É um secretário bem intencionado e talvez não faça mais porque não lhe dão condições para isso.
Ter uma remuneração digna sempre é algo buscado por todo servidor público. No caso dos médicos que são também servidores públicos, o senhor é favorável às greves, mesmo numa área essencial para a população?
As greves são um direito conquistado dos trabalhadores dispostos em lei. A lei também normatiza o que são os serviços essenciais, que possuem um tratamento diferenciado nas greves. Um pronto-socorro, por exemplo, deve manter o mínimo de atendimento à população. Como é essencial, todas as pessoas não podem parar ao mesmo tempo. Seja médico ou professor, a greve é um direito, mas o quorum mínimo de greves deve ser respeitado. Não somos contra greves, mas sim a favor de que seja respeitado o quorum mínimo das greves, seja nos hospitais, pronto-socorros ou emergências.
Volta emeia o Hospital Walfredo Gurgel, que tem o maior pronto-socorro do Estado, é notícia dos jornais por causa da superlotação. O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) começou uma regulação. Como o Cremern observa a mudança e a situação do HWG?
O Walfredo Gurgel não é só o maior hospital do Estado como também o melhor hospital de traumas. Sempre peço que, se eu for vítima de algum acidente, me levem para o Walfredo Gurgel. Lá estão os melhores profissionais. A regulação é importante para que o Walfredo atenda àquilo a que ele se propôs. Ou seja, um hospital de trauma. Vejo com muito bons olhos essa regulação feita pelo Samu Estadual. É uma forma de racionalizar o atendimento. Só será atendido no Walfredo quem realmente precise ser atendido lá. Uma fratura, um trauma, um apendicite, enfim. Acho que ajudará a ajudar a desafogar o hospital.
Como o senhor avalia as condições de trabalho dos médicos nos hospitais de Natal, especificamente em cada rede de saúde. Me refiro, por exemplo, a unidades como o Giselda Trigueiro, mantido pelo Estado, o Hospital dos Pescadores, de responsabilidade da prefeitura, e o Onofre Lopes, que pertence à UFRN?
O Giselda é especializado. Só atende doenças infecto-contagiosas. Tem uma equipe de profissionais extremamente responsável e comprometida com seu funcionamento. O HUOL é um hospital de ensino. Atende alta complexidade e acho que, dentro de seu propósito, atende à população, inclusive com um programa de atendimento ambulatorial muito importante. Com a atividade de ensino, a comunidade ganha muito. Quando há alunos, há melhor acompanhamento dos pacientes. Agregar ensino e atendimento é uma boa fórmula para melhorar todos os níveis, do atendimento à administração do hospital. Com relação ao Hospital dos Pescadores, muitas vezes ele carece de infraestrutura básica. Já houve, inclusive, falta de médicos no passado. Hoje desconhecemos problemas nas escalas daquela unidade. Deveria, portanto, ser melhor equipado para desafogar outras unidades maiores.
E como o senhor observa a formação universitária dos médicos aqui no Estado e no país?
Hoje temos problemas na formação médica que nos preocupa muito. O Brasil tem mais de 180 escolas médicas, o que nos preocupa muito por causa dessa proliferação, que muitas vezes prejudica a formação, seja por falta de hospitais ou de professores qualificados. Temos que ter muito cuidado. Por isso pedimos aos prefeitos que vão admitir médicos para que procurem saber se esses médicos têm registro no Conselho Regional de Medicina. No Brasil hoje temos uma geração que saiu do Brasil para fazer medicina na Bolívia, na Argentina, em Cuba, e ao voltar ao país precisam revalidar seu diploma no país. Essa revalidação é feita por universidades públicas federais, e há um número muito alto de reprovação nessas provas. Apesar disso, algumas vezes essas pessoas começam a trabalhar sem o registro no CRM, o que configura o exercício ilegal da medicina. No que se refere à formação, nos preocupa a proliferação das escolas e essa questão da revalidação do diploma.
Os novos médicos que saem das três faculdades de medicina existentes atualmente são bons profissionais?
Os exames nacionais de avaliação mostram que a UFRN e a Uern forma muito bons profissionais. No caso da UnP, ainda não há nenhuma turma formada. O curso dura seis anos, e foi criado há menos tempo que isso. Por este motivo não podemos falar da formação na UnP, mas a UFRN e a Uern têm cursos muito bem avaliados.
Fonte: DN
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