Em discurso nesta terça-feira (21) na abertura da 76ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, o presidente Jair Bolsonaro usou dados distorcidos para exaltar a política ambiental e o desempenho da economia brasileira durante o seu governo e defendeu a adoção do chamado tratamento precoce contra a Covid-19, cuja ineficácia é cientificamente comprovada.
No discurso, Bolsonaro também:
se posicionou contra o chamado passaporte sanitário, que confere benefícios às pessoas que tenham se vacinado contra a Covid-19;
afirmou que não há corrupção no governo;
citou dados fora de contexto para dizer que o desmatamento na Amazônia diminuiu;
disse que as manifestações de 7 de Setembro foram "as maiores da história", o que não corresponde à verdade ;
disse que o desempenho econômico do Brasil neste ano é um dos melhores entre os países emergentes.
Primeiro chefe de Estado a discursar, Bolsonaro disse não entender por qual motivo "muitos países, juntamente com grande parte da mídia", se opõem ao tratamento precoce contra a doença.
"Desde o início da pandemia, apoiamos a autonomia do médico na busca do tratamento precoce, seguindo recomendação do nosso Conselho Federal de Medicina. Eu mesmo fui um desses que fez tratamento inicial. Respeitamos a relação médico-paciente na decisão da medicação a ser utilizada e no seu uso 'off-label' [fora do que prevê a bula]. Não entendemos por que muitos países, juntamente com grande parte da mídia, se colocaram contra o tratamento inicial. A história e a ciência saberão responsabilizar a todos", disse Bolsonaro.
O tratamento precoce, por meio do uso de medicamentos como cloroquina e ivermectina, vem sendo defendido pelo presidente desde o ano passado. No entanto, estudos científicos já comprovaram a ineficácia desses remédios contra a Covid.
Além disso, a Organização Mundial de Saúde (OMS) diz que a cloroquina não deve ser usada como forma de prevenção; a Associação Médica Brasileira (AMB) diz que o uso de cloroquina e outros remédios sem eficácia contra Covid deve ser banido; e a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) diz que a cloroquina não tem efeito e deve ser abandonada.
Vacinação
Bolsonaro também disse defender a vacinação contra a Covid-19 e afirmou que, até novembro, todos os brasileiros que quiserem poderão se imunizar.
Entretanto, ele se posicionou contra restrições adotadas por países contra pessoas que se recusam a tomar a vacina.
"Até novembro, todos que escolheram ser vacinados no Brasil serão atendidos. Apoiamos a vacinação, contudo o nosso governo tem se posicionado contrário ao passaporte sanitário ou a qualquer obrigação relacionada a vacina", disse Bolsonaro.
Essa é a terceira vez que Bolsonaro discursa como presidente do Brasil — o representante do país é encarregado de abrir oficialmente a fala dos presidentes mundiais desde 1947.
Corrupção
O presidente também disse que o Brasil "mudou" após a sua chegada ao Planalto e afirmou que não há corrupção em seu governo
"O Brasil mudou, e muito, depois que assumimos o governo em janeiro de 2019. Estamos há 2 anos e 8 meses sem qualquer caso concreto de corrupção".
Apesar da declaração do presidente, autoridades encontraram indícios de corrupção no caso do contrato para a compra da vacina Covaxin. O governo, diante da suspeitas de irregularidades, cancelou o contrato.
O contrato da Covaxin se tornou alvo da CPI da Covid e do Ministério Público Federal.
Um grupo de juristas coordenado pelo ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior entregou recentemente à CPI da Covid um estudo sobre os possíveis crimes cometidos por Bolsonaro durante a pandemia. O grupo citou o caso Covaxin e um possível crime de prevaricação, que fica caracterizada quando um funcionário público dificulta ou atrasa alguma obrigação de seu cargo.
Atos de 7 de Setembro
Bolsonaro também citou as manifestações em favor do governo que ocorreram no 7 de Setembro, quando, em ameça golpista ao Supremo Tribunal Federal (STF), ele afirmou que não cumpriria mais decisões do ministro Alexandre de Moraes.
O presidente disse ainda que "no último 7 de Setembro, data de nossa Independência, milhões de brasileiros, de forma pacífica e patriótica, foram às ruas, na maior manifestação de nossa história"
Os atos de 7 de Setembro não foram os maiores já registrados no país. Apesar de não haver um balanço nacional, as imagens registradas no dia revelam uma manifestação muito menor que as registradas contra a presidente Dilma Rousseff, por exemplo.
Meio ambiente
Bolsonaro dedicou parte do discurso à preservação da Amazônia, ponto em que o governo é criticado dentro e fora do país em razão da política ambiental e dos altos índices de desmatamento e queimadas.
O presidente afirmou que "na Amazônia, tivemos uma redução de 32% do desmatamento no mês de agosto, quando comparado a agosto do ano anterior".
Essa redução percentual é verdadeira: em agosto de 2020, houve 1.359 km2 da Amazônia Legal sob alerta de desmatamento, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Em agosto deste ano, foram 918 km2 – a queda corresponde a 32%.
Os dados, entretanto, não traduzem toda a realidade ambiental e ignoram o contexto de avanço da destruição sob a gestão do atual governo.
Em 2021, por exemplo, a Amazônia teve o primeiro semestre com a maior área sob alerta de desmate em 6 anos.
Apesar de ter havido uma queda de 5% no desmatamento da Amazônia entre as temporadas de 2019-20 e 2020-21, as áreas sob alerta nos dois períodos ainda são as maiores desde 2015, quando o Inpe começou a medi-las.
O presidente disse ainda que 84% da floresta está “intacta” e convidou os presentes na assembleia a visitar a floresta.
Entretanto, de acordo com o Inpe, o desmatamento acumulado hoje na Amazônia corresponde a mais de 800 mil km2. A área original da floresta monitorada por satélite nos nove Estados da Amazônia Legal é de 3.994.454 km2. Ou seja, foram desmatados cerca de 20% da floresta, permanecendo 80% de pé."
No discurso, Bolsonaro também questionou, em tom retórico, "qual país do mundo tem uma política de preservação ambiental como a nossa?".
Outros biomas também têm tido perdas com a política ambiental brasileira: no Cerrado, por exemplo, houve a maior área sob alerta de desmatamento para agosto desde 2018. O número de focos de incêndio – considerados os números de janeiro a agosto – foi o maior desde 2012.
No Pantanal, houve recorde de queimadas em 2020. Um levantamento divulgado neste mês aponta que 17 milhões de animais vertebrados morreram por causa das chamas no bioma no ano passado.
Economia
Ao falar sobre economia, Bolsonaro distorceu informações sobre o desempenho do Brasil e sobre a criação de empregos no país.
Bolsonaro afirmou que a estimativa para o crescimento da economia brasileira em 2021 é de 5%. E que o Brasil tem um dos melhores desempenhos econômicos neste ano entre os países emergentes.
"Lembro ainda que o nosso crescimento para 2021 está estimado em 5%", disse, no discurso.
Em um ranking de 48 países, o Brasil aparece em 38º em desempenho do PIB do segundo trimestre, atrás de países como México, China, Chile, Peru e Turquia.
Bolsonaro afirmou ainda que, durante seu governo, o Brasil "recuperou a credibilidade externa e, hoje, se apresenta como um dos melhores destinos para investimentos."
A bolsa brasileira de fato vem recebendo volumes recordes de investimento estrangeiro. Parte dessa entrada se deve, no entanto, à recente alta de juros, e ao enorme volume de recursos disponíveis lá fora, graças principalmente ao pacote bilionário de ajuda dos Estados Unidos.
Desemprego
O presidente afirmou ainda no discurso que o Brasil terminou 2020 "com mais empregos formais do que em dezembro de 2019" e que isso ocorreu "graças às ações do nosso governo com programas de manutenção de emprego e renda que nos custaram cerca de US$ 40 bilhões."
Havia mais empregos formais ao final de 2020 que no fim de 2019. No entanto, as vagas perdidas entre março e junho do ano passado não foram totalmente recuperadas.
Além disso, segundo dados do IBGE, o desemprego estava em 14,1% em agosto deste ano, próximo às máximas históricas, e 14,4 milhões de brasileiros estavam desempregados naquele mês.
Assembleia
Bolsonaro é o único dos líderes do G20 (grupo das 19 principais economias do mundo e a União Europeia) presentes à Assembleia Geral da ONU a dizer que não tomou a vacina contra a Covid-19.
Jornais dos Estados Unidos e do Reino Unido noticiaram que o presidente brasileiro participaria da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) sem ter tomado a vacina.
A sede da ONU fica na cidade de Nova York, onde há exigência de um comprovante de vacinação para que as pessoas entrem em ambientes públicos que são fechados (como o saguão onde acontece a reunião).
A Prefeitura de Nova York pediu para que os chefes de estado fossem obrigados a comprovar vacinação para entrar no prédio das Nações Unidas, mas o secretário-geral da ONU, António Guterres, disse que a entidade não tem como exigir isso.
Na segunda (20), o ministro do Turismo, Gilson Machado Neto, publicou uma foto em uma rede social em que Bolsonaro e parte da comitiva brasileira comem pizza na rua, em Nova York.
A cidade exige, desde 16 de agosto, que as pessoas apresentem comprovante de vacinação contra a Covid-19 para frequentar lugares fechados, como restaurantes, cinemas, teatros e academias.
Fonte: G1
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