O padre Ivanildo de Assis Mendes Tavares, afastado das suas funções religiosas da comunidade São José Operário da Vila Prudente, na Zona Leste de São Paulo, pelo Arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Pedro Scherer, considera que a decisão foi racista e homofóbica.
O padre Ivanildo de Assis Mendes Tavares, conhecido como padre Assis, durante celebração de casamento coletivo em Franco da Rocha, na Grande SP, em 22 de outubro. — Foto: Orlando Júnior/Prefeitura de Franco da Rocha
O padre Assis foi afastado após ter participado de um casamento comunitário religioso onde, ao menos, três casais abençoados pelos vários religiosos presentes, de diferentes crenças, eram LGBTQ+.
A assessoria de imprensa da Arquidiocese de SP negou e informou ao g1 que "a participação em uma cerimônia de casamento civil sem as devidas autorizações e procedimentos previstos pelas normas da Igreja, das quais o padre faz parte e conhece bem, consiste em uma irregularidade canônica". (leia mais abaixo)
"Eu doei a minha vida, amo o que eu faço, são 10 anos pisando nos becos e vielas da Vila Prudente, nosso quilombo. Para mim essa decisão foi muito homofóbica e racista, isso não vai mudar. Em pleno século 21, temos que rever isso. A gente celebra o amor, quantos casamentos tem na igreja e não tem amor? A relação homoafetiva tem que ser realizada pela própria igreja, todos nós temos direito a uma benção, a celebrar o amor, não tem A nem B, tem que deixar essa questão de moralidade, de moralismo para lá e acolher as pessoas como elas são, acolher", afirmou o padre.
Assis foi para Lisboa - em Portugal - visitar familiares, em janeiro ele vai para Cabo Verde, na África, onde nasceu, mas pretende voltar para o Brasil em março para continuar a faculdade de Direito. "Fiquei um pouco triste com a decisão porque a mão foi muito pesada, eu não recebi nenhuma advertência, nem nada, foi logo suspenso, espero poder voltar para São Paulo e voltar a exercer tranquilamente a minha função".
"A Igreja Católica sempre perde, sempre acorda mais tarde. Quando acordar dessa vez ela estará vazia, os jovens já não estão mais indo, por conta de coisas desse tipo, coisas absurdas sem pé nem cabeça. E tudo isso em nome de Jesus, que Jesus é esse cara? A gente está manipulando o nome de Jesus. O Jesus que conhecemos acolhe e não separa. O mais triste é que tomaram uma decisão sem pensar se o povo vai sofrer ou não, é realmente muito triste, dei minha vida para isso", afirmou.
A Arquidiocese de SP informou que "a Igreja (e, consequentemente, os sacerdotes que a representam) tem o matrimônio como um de seus sacramentos, necessitando da devida preparação e encaminhamentos para poder ser celebrado validamente do ponto de vista religioso".
"Isso garante que os noivos tenham consciência de que estão celebrando uma união sagrada e indissolúvel, como professa a fé católica. Quando um ministro católico, munido das vestes litúrgicas próprias de uma celebração católica, confere uma 'simples bênção' a uniões civis fora da devida celebração religiosa, acaba induzindo as pessoas ali presentes a crerem ter celebrado um Matrimônio católico, além reduzir a compreensão da própria Igreja sobre o sacramento do Matrimônio, algo maior que uma mera bênção que se dá aos fiéis em outras circunstâncias", continuou.
A Congregação do Espírito Santo (Espiritanos), a qual o padre Assis pertence, também encaminhou uma nota sobre o assunto. (leia mais abaixo)
Abaixo-assinado da comunidade
O afastamento gerou um abaixo-assinado publicado pela Comunidade São José Operário nas redes sociais, onde mais de 2.500 pessoas assinaram o documento pedindo que Dom Odilo reconsidere a punição. O título da carta diz que “Entre a lei e o amor, escolhemos o amor!” e pede que a Igreja Católica reconsidere o afastamento do padre (leia aqui).
O abaixo-assinado foi escrito por lideranças de cinco comunidades carentes da região Episcopal Belém, onde o padre atua: a Favela de Vila Prudente, a Favela Jacaraípe, Favela Ilha das Cobras, Favela Haiti e Favela da Sabesp, todas na Zona Leste.
Nascido em Cabo Verde, na África, padre Assis Tavares, como é conhecido, faz desde 2013 um trabalho pastoral de ajuda aos pobres da região. Defensor e integrante de movimentos negros da Zona Leste, o religioso foi afastado pelo Arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Pedro Scherer, por ter participado de um casamento religioso comunitário em outubro na cidade de Franco da Rocha, na Grande SP.
Na carta de afastamento, o Arcebispo alega que o padre participou de uma "simulação de sacramento", conduta que é proibida pelo código canônico, com isso, o padre está proibido de celebrar sacramentos e de exercer suas funções sacerdotais.
A Arquidiocese de SP disse que as comunidades da Vila Prudente continuarão sendo assistidas pastoralmente pelo setor episcopal do Belém.
O que diz a Arquidiocese de SP
Por meio de nota, a Arquidiocese de São Paulo disse que não se trata de uma punição ao padre, "mas, sim, uma medida cautelar, prevista nas normas da Igreja, quando há uma irregularidade grave, do ponto de vista religioso, que precisa ser melhor esclarecida".
Segundo a Igreja Católica, a “'retirada do uso de Ordem' ao referido Padre na Arquidiocese de São Paulo, é cautelar, podendo ser mudada, após serem esclarecidos os fatos e as suas consequências e a depender da aceitação do sacerdote de observar as normas da Igreja".
"O que causou a medida foi o possível delito canônico de 'simulação de sacramento' do Matrimônio, pois não houve o devido encaminhamento da celebração das mencionadas uniões, nem foi feito antes, como prescrevem as normas eclesiásticas, o regular 'processo matrimonial' para a verificação das condições para a realização válida e lícita dos casamentos, do ponto de vista religioso. E o sacerdote não podia celebrar casamentos, ainda que fossem 'regulares', sem a devida autorização do bispo ou do pároco local. Nem poderia celebrar validamente em conjunto com ministros de outras religiões, sem a devida 'dispensa' para tanto. Tratou-se, portanto, da participação inteiramente irregular, do ponto de vista das normas da Igreja Católica, para uma celebração de casamentos", afirmou a nota da Arquidiocese.
A Igreja Católica paulista não menciona a questão dos casais gays no casamento e afirma apenas que "o fato ocorrido não consistiu apenas em uma benção dada às pessoas individualmente, que, certamente, não pode ser negada a ninguém que a pede. O que houve, na verdade, foi uma bênção às uniões civis ali realizadas".
"As pessoas presentes desejavam se casar e não apenas receber uma bênção. A Igreja tem o Matrimônio como um dos seus sacramentos e não permite que sejam dadas “simples bênçãos” que possam levar os casais a crerem ter contraído Matrimônio católico", declarou a nota.
O que diz a Congregação Espiritanos
"O Pe. Ivaldino de Assis Mendes Tavares é membro da congregação do Espírito Santo (Espiritanos) e, recentemente, foi revogado seu uso de ordens na Arquidiocese de São Paulo. Uma carta de apoio ao Pe. Assis tem agitado as redes sociais na última semana. Algumas pessoas estranharam os motivos apresentados na carta para a suspenção e, por isso, pediram mais informações.
A Carta publicada assim diz: 'As comunidades da Área Pastoral São José Operário - Região Episcopal Belém, vêm através desta Carta Aberta manifestar seu total irrestrito apoio a o Pe. Assis Tavares diante da decisão do Cardeal Dom Odilo Pedro Scherer na Arquidiocese de São Paulo de proibi-lo de celebrar sacramentos e de exercer suas funções sacerdotais na Arquidiocese de São Paulo, diante do fato da acusação de ter "abençoado pessoas'.
'Fato é que a presença de Padre Assis incomoda, seu sorriso, sua opção pelos pobres incomoda, a cor da sua pele incomoda, seu cabelo incomoda. Desde sua chegada a Área Pastoral São José Operário, nas favelas da Vila Prudente, caminhando no meio do povo, entre os becos e vielas sua opção é bem clara, e para nós, é um irmão que desde jovem saiu das Ilhas de Cabo Verde e assumiu sua missão de ser presença no meio do povo oprimido, mas isso tem um custo. Somos testemunhas do quanto o padre Assis é fiel à o Evangelho, essa fidelidade que tem como prêmio a Cruz. Felizes os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus- Mt 5,10'.
Como Congregação, queremos esclarecer que os motivos acima NÃO LEVARAM À SUSPENSÃO do Uso de Ordem do Pe. Assis na Arquidiocese.
Também, trata-se de uma simplificação dizer que foi suspenso por que "abençoava pessoas". Portanto, vamos aos fatos:
O Pe. Assis Tavares, com Uso de Ordem da Arquidiocese de São Paulo, esteve presente, realizando uma "benção" em um "casamento comunitário" que foi realizado no dia 22 de outubro, no Ginásio de Esportes Carlos Vicente Ferreira, na cidade de Franco da Rocha (Diocese de Bragança Paulista). O Casamento comunitário foi organizado pela Prefeitura de Franco da Rocha. A foto de Pe. Assis, vestido de padre aparece na página web da Prefeitura.
Depois de uma pesquisa, o Dom Sérgio Aparecido Colombo, Bispo de Bragança Paulista - SP descobriu o nome do Pe. Assis e enviou uma Carta para Dom Odilo Scherer, Arcebispo de São Paulo, diocese onde Pe. Assis tem Uso de Ordem.
No dia 27 de outubro de 2022, o Bispo auxiliar da Região Episcopal Belém, Dom Cícero Alves de Franca, convocou Padre Assis para conversar sobre a situação. No mesmo dia, também, o Dom Cícero conversou com o Padre Marcos Foley, Superior Maior dos Espiritanos Brasil Sudoeste, sobre a situação e sugeriu: a possibilidade de uma iniciativa, da parte do Pe. Assis, reconhecendo oe r r o para não agravar a situação.
No dia 25 de novembro de 2022, o Pe. Assis, o Superior, Pe. Marcos, foram convocados pelo Cardeal Dom Odilo Scherer, na Cúria Central (Higienópolis) para esclarecer a situação. Na reunião de 50 minutos com Dom Odilo, o Pe. Assis insistiu que só deu uma benção e não aceitava voltar atrás.
Consequentemente, o Pe. Assis teve seu Uso de Ordem revogado na Arquidiocese de São Paulo pelos seguintes motivos:
Assistiu a celebração de casamento de 20 casais na Diocese de Bragança Paulista, no dia 22 de outubro de 2022, sem a necessária autorização e\ou delegação do ordinário local ou do respectivo pároco (cfr. Cânones 1108, 1110 e 1111 CIC);
Não foram realizados os atos canônicos prescritos para a celebração hígida do Sacramento do Matrimônio (Processo matrimonial e proclamas, cfr. 1066, 1067, 1069 e 1070 CI e Legislação complementar da CNBB referente aos cânones 1067 CIC). Atos que visam tutelar a santidade do Sacramento e salvaguardar que os nubentes não tenham impedimentos (cfr. Cânones 1073 - 1094 CIC) para contrair o Matrimônio, também não foram realizados previamente. Não se pode excluir que, entre os que se "casaram" nessa cerimônia coletiva tenham participado casais com impedimentos dirimentes por causa de existência de vínculos anteriores, além da participação de três casais homoafetivos, conforme confirmou o próprio Pe. Assis;
Não foi pedida e nem recebida qualquer dispensa do ordinário local quanto à forma canônica prescrita para a celebração do Sacramento do Matrimônio (cfr. Cânones 1108, 1115, 1117, 1118, 1119 CIC);
Os casamentos em questão foram realizados fora do templo, com a presença de casais e representantes de várias denominações religiosas, sem a necessária licença do ordinário para tanto (cfr. 1124- 1126 CIC). E, portanto, teve seu Uso de Ordem revogado por ter incorrido no delito de simulação de Sacramento (cfr. Cân 1379, 1e2 CIC).
Observação. Pelo Código de Direito Canônico da Igreja Católica um padre, para presidir o sacramento de matrimônio, necessita de delegação do pároco ou do bispo local. São orientações normativas legais eclesiásticas que muita gente não tem pleno conhecimento. O Código de Direito Canônico tem como finalidade manter uma unidade saudável na Igreja.
Há certa confusão sobre as bençãos dadas pelos padres. Obviamente, não há problema do padre benzer pessoas, casas, animais etc. O problema surge quando o padre benze uma união que é entendido pelo direito canônico (confere cânones acima) como simular o sacramento de matrimonio para Católicos.
Toda sociedade, assim como a Igreja, tem suas leis, caso contrário se desintegram. Devido a sua importância na vida humana e nas culturas - evitando, por exemplo a bigamia, que é um crime tipificado no Código Penal Brasileiro e , outros delitos contra a vida e a sã convivência- o casamento é regulado tanto pela Igreja como pelo Estado/País. As leis evoluem, mas para isso, há necessidade de tempo. Um exemplo recente, da necessidade desta organização normativa legal, foi visto nas últimas eleições, quando percebemos a importância das leis para preservar a democracia no país.
Para concluir, como Congregação, confirmamos que o Pe. Assis sempre foi amigo, bom confrade, muito trabalhador, comprometido com os mais pobres, próximo dos sofredores, entusiasmado, servidor e um missionário de diálogo.
Estamos acompanhando, refletindo, dialogando e tratando toda esta questão com abertura, profundidade, responsabilidade e espírito evangélico. De modo que temos muito presente o confrade, o contexto do ocorrido, as necessidades pastorais, as vidas e os compromissos missionários espirita nos assumidos com zelo e dedicação na Arquidiocese de São Paulo e, desde muitos anos, também nas comunidades da Vila Prudente. Estranhamos e lamentamos sua presente atitude de falta de flexibilidade neste fato ocorrido.
Reafirmamos nosso compromisso com a verdade, a justiça, a vida, a escuta, com o diálogo e as relações humanizadoras. Extremismos nunca fazem bem e podem ferir ambos os lados. Há situações na vida em que a paz e a vida podem ser mais importantes do que ter razão".
Fonte: g1