No primeiro semestre de 2020, o número de mulheres atendidas em todo o país pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em razão de abortos malsucedidos – tenham sido provocados ou espontâneos – foi 79 vezes maior que o de interrupções de gravidez previstas pela lei, de acordo com levantamento feito pelo G1 com dados do DataSUS.
Aborto inseguro: ilustração mostra mulher no chão — Foto: Wagner Magalhães/G1
De janeiro a junho, o SUS fez 1.024 abortos legais em todo o Brasil. No mesmo período, foram 80.948 curetagens e aspirações, processos necessários para limpeza do útero após um aborto incompleto. Esses dois procedimentos são mais frequentes quando a interrupção da gravidez é provocada, ou seja: a necessidade é menor no caso de abortos espontâneos.
Para especialistas em saúde da mulher ouvidos pelo G1, essa discrepância indica que as mulheres não têm acesso adequado ao aborto previsto na legislação e que o próprio sistema hospitalar arca com os custos de procedimentos pós-abortos clandestinos.
A lei 12.845, de 2013, regulamentou o atendimento obrigatório e integral a pessoas em situação de violência sexual e concedeu todos os meios à gestante para interrupção da gravidez em decorrência de estupro. Não é necessário que a mulher apresente boletim de ocorrência, nem que faça exame de corpo de delito.
Mas muitos hospitais exigem documentos que comprovem a necessidade de se fazer um aborto após um estupro, por exemplo. Ou se negam a fazer o aborto legal.
Foi o caso da menina de 10 anos que engravidou após ter sido estuprada pelo tio no Espírito Santo. No sábado (15), a equipe médica do Programa de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual (Pavivi), em Vitória, no Espírito Santo, se recusou a fazer o aborto legal (veja vídeo ao final da reportagem). Diante disso, ela foi levada para Pernambuco, onde fez a interrupção.
Maternidade em Pernambuco onde menina de 10 anos fez aborto legal — Foto: GloboNews/Reprodução
O obstetra Jefferson Drezett, que implementou e coordenou por 24 anos o serviço de aborto legal do Hospital Pérola Byington, em São Paulo, avalia que a discrepância entre procedimentos como curetagem e aspiração e abortos legais mostra que o número de interrupções legais é menor do que deveria ser.
"Pros níveis de violência que a gente tem hoje no Brasil, que são muito, muito perversos com as mulheres, nós deveríamos ter um número muito maior de abortos legais. Essa proporção maior de curetagens e aspirações do que de abortos legais é esperada, mas o tamanho dela não é justificável. Não é possível que a gente tenha, depois de 80 anos de lei, um percentual tão pequeno de abortos legais em um país que é tão violento contra as mulheres", avalia.
Segundo Drezett, ainda que exista um número razoável de mulheres que, ao engravidarem de um estupro, optam por manter a gestação, a maioria delas busca interromper a gravidez, mas não consegue acesso a esse direito.
"A gente calcula que aproximadamente 6% das mulheres que sofrem violência sexual em idade reprodutiva e não usam método contraceptivo vão engravidar em decorrência do estupro. Então o número de gestações decorrentes de estupro é muito maior do que esses 1 mil abortos legais ocorridos no 1º semestre. O que quer dizer que as mulheres simplesmente não estão conseguindo encontrar uma resposta adequada do estado", explica Drezett.
Aborto legal em 3 situações
No Brasil, o aborto legal é permitido apenas em três situações:
gravidez decorrente de um estupro;
risco à vida da gestante;
e anencefalia do feto.
De acordo com a pesquisa Serviço de Aborto Legal no Brasil, que analisou o período de 2013 a 2015, mais de 90% dos abortos legais no país ocorrem em gestação resultante de estupro, seguido por anencefalia do feto (5%). Apenas 1% dos casos teve como justificativa o risco de vida para a gestante.
Para a médica ginecologista e obstetra Ana Teresa Derraik, diretora médica do Nosso Instituto, organização que atua na área de saúde sexual e reprodutiva da mulher, os procedimentos cirúrgicos seriam evitados se os abortos legais fossem realizados.
"Hoje, há muita evidência de que o aborto medicamentoso é a forma mais segura e mais eficaz de induzir um aborto. Se as mulheres tivessem acesso de forma mais indiscriminada, com certeza o grau de hospitalização para que qualquer procedimento fosse executado seria muito menor", diz.
"Além disso, muitas mulheres que teriam direito a aborto legal não sabem que esse direito existe. As gestações nas meninas de menos de 14 anos são sempre decorrentes de estupro. Essas meninas teriam todas direito ao aborto legal."
Os números de procedimentos médicos realizados em 2020 são menores que no ano anterior, possivelmente por conta da pandemia de Covid-19. Mas a proporção entre abortos legais e procedimentos pós-aborto se mantém semelhante à de anos anteriores (veja no gráfico abaixo).
Procedimentos médicos pós-aborto e abortos legais feitos pelo SUS, de janeiro a junho, por ano — Foto: Aparecido Gomes/Arte G1
O SUS não tem dados de quantas mulheres foram atendidas em decorrência de abortos clandestinos. Mas elas fazem parte do grupo que teve de se submeter a alguma das 80.948 intervenções realizadas no 1º semestre em decorrência de aborto espontâneo, clandestino ou por complicações pós-parto.
Esses processos cirúrgicos dividiram-se da seguinte forma:
74.362 curetagens;
6.586 procedimentos de aspiração manual intrauterina (AMIU).
“A maioria dos abortos que precisam de um procedimento desse tipo são abortos induzidos, porque no aborto espontâneo é muito mais comum que ocorra a expulsão completa do produto da gravidez do que no aborto provocado", explica a médica sanitarista Tânia Lago, professora do departamento de Medicina Social da Santa Casa de São Paulo. "Não é possível dizer qual percentual dessas 80 mil mulheres atendidas pelo SUS fizeram um aborto induzido, mas com certeza é a maioria.”
Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto, de 2016, quase metade das mulheres brasileiras que fez aborto clandestino precisou ser internada para finalizar o aborto: 48% das entrevistadas foram internadas no último aborto relatado.
Custos para o SUS
Em 2020, o sistema de saúde brasileiro já gastou 30 vezes mais com procedimentos pós-abortos incompletos (R$ 14,29 milhões) do que com abortos legais (R$ 454 mil ).
Estes valores consideram apenas o custo de cada procedimento na tabela do SUS – não levam em consideração gastos com medicação e diárias de internação, por exemplo.
O valor repassado pelo sistema para um aborto legal é de R$ 443,40, mesmo de um parto normal, sem gravidez de risco. Já uma curetagem pós-aborto ou parto custa R$ 179,62 para o SUS, e a aspiração manual intrauterina (AMIU), R$ 142,84.
Riscos do aborto clandestino
Para Tânia Lago, que estuda saúde reprodutiva e leciona na Santa Casa de SP, a proporção consideravelmente maior de procedimentos pós-aborto com relação aos abortos legais mostra que as mulheres não têm acesso adequado ao aborto previsto na legislação.
“Essa proporção mostra que o acesso ao aborto legal ainda é muito pequeno no Brasil. Acima de tudo, esse número indica que, embora o aborto seja legal em caso de estupro e esteja garantido no código penal desde 1940, as mulheres não conseguem fazer. E o pior: é possível que mulheres jovens e adultas, quando engravidam de estupro, acabem fazendo um aborto solitário em casa, que depois vai acabar no hospital, nesse dado de curetagens e aspirações”, avalia a médica.
Drezett concorda que a dificuldade para acessar o serviço de aborto legal pode levar mulheres que têm direito à interrupção de gestação para a clandestinidade.
"Essa menina do Espírito Santo, ela conseguiu de alguma maneira ir pra outro estado. Mas uma mulher de 21 anos, vítima de um estupro, ela teria que dar um jeito para conseguir esse atendimento? Aquelas que têm algum recurso pessoal conseguem fazer a interrupção de gestação legal, elas vão para outra cidade, elas se deslocam. Isso eu te falo por anos e anos à frente do serviço de aborto legal do Hospital Pérola Byington: a gente tinha um percentual enorme de mulheres que vinham de outros estados. Mas e as que não conseguem? Essas mulheres podem terminar num aborto clandestino e nem aparecerem nas estatísticas", afrima Drezett.
A sanitarista Tânia Lago explica que curetagens e aspirações são processos cirúrgicos necessários quando a expulsão do produto da gestação não é completa.
“Essa necessidade de curetagem não é uma complicação ainda. Se a mulher fez um aborto clandestino e essa expulsão do produto da gestação não foi completa, ela vai continuar tendo cólica e muito sangramento. Então, o que ocorre é que ela procura o hospital e se faz um dos dois: ou curetagem ou aspiração, para terminar o aborto, mas não é uma complicação."
Ela destaca ainda que a complicação de aborto clandestino mais comum ocorre justamente quando a mulher não procura os serviços de saúde.
“O que é uma complicação de aborto? É quando a mulher teve uma expulsão incompleta e ficou com medo de ir no hospital, continuou em casa sentindo dor e sangramento, e aquele material no útero se infecta, e aí ela tem uma infecção. E é essa infecção que pode ser grave, que é uma complicação de um aborto induzido”, explica.
Derraik, do Nosso Instituto, reforça que com o advento da medicação que consegue fazer um abortamento mais completo, o número de complicações diminuiu dos anos 2000 para cá. Mas alerta que não são incomum casos de abortos feitos com uso de objetos, por exemplo.
"A gente já recebeu pessoas que injetaram soda cáustica no útero, eventualmente o talo de mamona, arame de cabide, enfim, a gente ainda vê na emergência casos desses. A complicação mais comum são os abortos incompletos, ela tenta fazer de forma clandestina, mas não consegue eliminar todo o conteúdo uterino. Então, ela chega no hospital com um quadro de sangramento, eventualmente já com um quadro infeccioso", diz.
'Essa mulher não pode esperar muito tempo porque há um risco muito grave de sequelas, de perda do útero e até de morte", descreve Derraik.
Mortalidade
O aborto inseguro e ilegal, realizado sem atenção médica, registra taxas altas de mortalidade em diversas regiões do mundo.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) não tem dados por país, mas estima que a taxa de mortalidade por procedimentos de abortamento inseguro seja de 30 mortes a cada 100 mil abortos na América Latina e Caribe. A região tem uma das taxas mais altas do mundo, junto com África Subsaariana e Ásia.
O aborto foi a causa de 11,4% das mortes maternas na única investigação realizada no Brasil, em 2002, nas capitais dos estados e no Distrito Federal.
Embora nem todo aborto induzido não previsto por lei seja inseguro, já que pode ser realizado com métodos adequados e por profissionais qualificados, diversas pesquisas destacam que a ilegalidade e a clandestinidade aumentam os riscos à saúde associados ao procedimento.
Um estudo brasileiro de 2012 que analisou a mortalidade materna no país decorrente do aborto verificou que ocorrem infecções em 42,9% dos abortos inseguros, contra apenas 3,3% dos abortos seguros. A pesquisa foi publicada no "International Journal of Gynecology & Obstetrics", periódico médico mensal que abrange obstetrícia e ginecologia.
Acesso ao aborto legal
Como mostrou reportagem do G1, o acesso ao serviço de aborto legal na cidade de São Paulo – a primeira do país a ter um programa voltado para o atendimento dos casos previstos em lei – ainda é dificultado pelo desconhecimento da legislação, das normas técnicas estabelecidas pelo Ministério da Saúde e do preconceito em relação a tal direito.
"Procura outro hospital ou, se quiser, liga em 15 dias."
Essa orientação foi dada pelo telefone por uma profissional do atendimento à violência sexual e ao aborto legal do Hospital Tide Setúbal, na Zona Leste, um dos cinco centros médicos municipais indicados pela Prefeitura de São Paulo para prestar o serviço e acolhimento às mulheres na cidade.
A reportagem do G1 testou na época o atendimento inicial e telefônico dos hospitais municipais referendados para aborto legal. Dos cinco indicados pela prefeitura, apenas um – o Hospital Mario Degni, no Jardim Sarah – repassou corretamente as informações.
Para Jefferson Drezett, do Pérola Byington, as secretarias de saúde não podem alegar incapacidade para realizar a interrupção de gestação prevista em lei porque a legislação que a permite existe há oito décadas.
"Há oitenta anos, desde 1940, a lei brasileira prevê aborto legal em casos de estupro. O serviço de saúde no Brasil teve 80 anos para solucionar essa questão, para dar uma solução e uma resposta para as mulheres. Se não pelo respeito aos direitos humanos, ainda que o estado brasileiro seja misógino, ele deveria ter resolvido isso há 80 anos pela força da lei. Mas ele vai continuar não resolvendo, porque absolutamente nada tem acontecido. O caso dessa menina do Espírito Santo não é excepcional, a gente vê cotidianamente mulheres que têm o acesso ao seu direito negado", avalia.
Drezett lembra que, apesar das normas do Ministério da Saúde, ainda há estados do país que não possuem nenhum serviço de aborto legal.
"Existem estados brasileiros que não têm nenhum serviço de aborto legal no estado inteiro, e existem outros que dizem que têm, mas acontece o que aconteceu no Espírito Santo, o atendimento não chega. Não é justo que uma cidadã tenha que ser mandada para outro estado ou outra cidade porque um lugar cumpre a lei e o outro, não", avalia. "As secretarias de saúde tiveram 80 anos para se preparar. A normativa do Ministério da Saúde sobre aborto, que é muito reconhecida no Brasil e lá fora, é de 1999: são mais de 20 anos. Não é possível que mais de 20 anos depois um gestor de hospital alegue que desconhece a norma", afirma o médico.
* Colaborou Lívia Machado
Fonte: G1